Epílogo

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OS CORREDORES LABIRÍNTICOS do Sheol estavam cada vez mais agitados com a notícia de que uma facção de demônios recém-transformados planejava uma ação evasiva contra os anjos de baixo escalão que faziam a proteção dos portões com acesso ao Céu. As tropas comandadas internamente por Gorfoledd possuíam um contingente com mais de cinco mil soldados à sua disposição, o que tornava o dia a dia na dimensão esquecida deveras caótico.

Por conta do recrutamento infernal de Gorfoledd no Sheol se tornar quase tão frequente quanto as incursões do demônio na área das celas, à procura de novos candidatos que topassem bater de frente contra o poderio de Demophilus, o Senhor do Oitavo Círculo, os Santos Vigias começaram a mandar que seus melhores homens patrulhassem o subterrâneo com maior frequência. Naquele dia (ou seria noite?), foi a vez de Akanael vigiar de perto o pátio de prisioneiros, bem como o conjunto de celas cercado pela correnteza de bile ácida que passava por ele constantemente.

Costel Grigorescu andava bastante desconfortável com a sua situação no subsolo, uma vez que o seu nome vinha sendo mencionado nas rodas de conversas da maioria das facções infernais a que tinha acesso. Ele já tinha sido contatado por seu antigo rival, Adon Gorky, e sentia que os seus dias de paz estavam prestes a acabar, enquanto mais de seus inimigos almejavam se tornar seus aliados, dado o grau de perícia com que ele sempre agira na Terra, em seus tempos de vampiro trapaceiro.

Cativo em sua cela, o rapaz de olhos azuis desenhava com uma caneta de tinta vermelha figuras assimétricas no canto das páginas de seu esgarçado diário, quando ouviu aproximação do lado de fora. Custou a levantar a cabeça para enxergar quem queria vê-lo e continuou sentado no chão úmido quando a voz grave soou como a um estrondo em seus tímpanos.

— Costel Grigorescu. Você tem noção de o quanto a sua simples presença nesse lugar tem incitado rivalidades nos últimos meses?

A ponta da caneta esferográfica parou de riscar o pergaminho amarelado um instante. A figura altiva do outro lado das grades dirigia-se diretamente a ele, o que, em outros tempos, o deixaria bastante envaidecido. Na atual conjuntura embaraçosa dos fatos, no entanto, aquilo só o chateava.

— Ouvi dizer.

O ser celestial que o interpelava usava uma armadura prateada que fulgia num brilho capaz de iluminar tudo ao seu redor. Às suas costas, caía uma capa alva como a neve de bordas douradas, enquanto uma espada de cabo grosso e guarda angular descansava em uma bainha de costura clara e precisa na sua cintura.

— O seu rosto soa familiar a muito dos cativos além das barreiras de fogo. Foi o seu outro quem mandou muitos deles para aquela dimensão, sem caminho de volta — dizia o anjo.

— O "meu outro"? É assim que chamam o nefilim que tomou o meu corpo por mais de cinquenta anos?

Costel ergueu os olhos pela primeira vez e constatou que falava com o próprio Akanael. A forma real do anjo possuía a pele preta como a noite e seus olhos incidiam de um dourado hipnotizante, difícil de se ignorar. Naquele momento, ele sentiu que precisava dizer algumas verdades para o sujeito do outro lado das barras, mas não podia se indispor com mais pessoas do que já havia feito desde a sua chegada ao Sheol.

Em vez disso, ele enrolou o cordão que usava como marca-página em torno do caderno de capa escura e se levantou. Enquanto ele caminhava até as grades, Akanael mal se moveu.

— Contra a minha vontade, o meu rosto foi usado por meio século para estampar a rebelião entre o Inferno e o Céu, Akanael. Eu me tornei o símbolo de toda uma geração de demônios que via em mim a chance de atravessar os portais de fogo e barbarizar com os filhos de Deus na Terra. Eu sei bem o quanto sou pleiteado aqui embaixo, mesmo tendo deixado claro que há muito tempo não tenho mais nada a ver com Thænael, o nefilim.

Akanael lançou um olhar para o objeto nas mãos do rapaz maltrapilho e de pés descalços. Não sabia o que era e esperou que ele revelasse a sua utilidade.

— Do jeito que as coisas andam quentes por aqui, a tal rebelião que tanto têm alardeado pelos corredores não vai tardar a acontecer, quer os Santos Vigias estejam de olho ou não. Gorfoledd, Adon, Demophilus... uma hora ou outra qualquer um desses desgraçados vai acabar conseguindo vencer as barreiras que os prendem aqui embaixo e aí, a menos que você e a sua turma tenham um plano de contingência muito bem traçado, nenhum de nós vai sobreviver muito mais tempo para contar a história.

Costel colocou o caderno que segurava por entre as barras, o fazendo tocar o peito da armadura reluzente. Akanael desceu os olhos para o diário sem qualquer outra reação.

— Eu sei o que a minha irmã significou para você, Akanael. Conhecendo-a bem como a conheço, eu tenho certeza que no período em que passou na Terra, no corpo de Arnaud Quinn, você e ela se tornaram muito mais do que parceiros de luta.

Os dedos envoltos em uma luva metálica agarraram o bloco de páginas, o puxando para fora.

— E o que seria isso? Um pedido de desculpas?

A íris azul não se desviou do rosto de ébano.

— Como Grigori, sei que você deve ter passagem garantida do Céu para a Terra. Quando voltar para lá, quero que dê um jeito de fazer com que o diário que escrevi nos últimos anos na prisão chegue às mãos de Alina. Eu preciso que ela leia a minha história através da minha visão dos fatos. Ela tem que entender que Thænael me forçou a fazer tudo que fiz. Que eu não sou culpado em estar aqui. Preciso que ela interceda por mim.

Akanael não parecia saber o que dizer. Naquele momento, próximo dali, outro de seus aliados celestes surgia pela porta de entrada da caverna a fim de inspecionar o lugar e garantir a sua segurança.

— O acesso livre que pensa que tenho com a Terra tem sido bloqueado ultimamente, mas farei o possível para que o diário chegue às mãos de sua irmã, Grigorescu. Eu lhe dou a minha palavra.

Houve uma espécie de cumprimento de cabeça entre os dois pouco antes de Akanael guardar o caderno num compartimento de sua armadura e começar a se dirigir até o colega anjo.

O rio amarelado de bile atravessava a frente da cela de Costel no momento em que o vampiro se sentou diante das grades e ficou a observar com semblante plácido o líquido ardente a correr.

Uma risada sinistra soou distante. Longínqua. Quase imperceptível. De repente, parecia reverberar em seu cérebro. Dentro da sua mente. Através de seu crânio. Ele teve que cobrir as duas orelhas com as mãos calejadas. Caiu no chão em agonia e começou a se debater.

"Viu como ele nem me percebeu aqui, pequeno Costel? Nunca pensei que você pudesse ser tão bom ator, meu caro amigo. Agora que parte de mim está indissociável da sua alma, nós dois só precisamos de uma nova casca no mundo do Criador. E de uma passagem para fora desse monte de excremento para onde fomos jogados. Assim que a rebelião começar e nós estivermos entre as fileiras dos refugiados, nada mais se interporá entre você e eu. NADA!"

A risada de Thænael ecoou ainda mais alta e, por um instante, era como se todos os cativos do Sheol a pudessem perceber.



FIM

NOTA DO AUTOR: Um grande obrigado a você que chegou até ao final dessa obra. Espero que a jornada tenha atendido as suas expectativas e que a história valha a sua recomendação. Um grande abraço e NAMASTE!



 

Alina e a Chave do InfinitoOnde histórias criam vida. Descubra agora