justamente

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"Você me liga assim que você escutar esse recado, tá me entendendo? Tchau."

Essa era a mensagem de voz deixada por sua ex mulher.

Ele sentiu o coração acelerar. Já faziam três horas desde que ela havia deixado a mensagem, e ele simplesmente não conseguiu encostar no telefone. Uma reunião atrás da outra, um problema atrás do outro. Stenio pensou que Clara estivesse precisando de alguma coisa e automaticamente seu coração apertou.
Se sentiu culpado por ter saído hoje de manhã, e agora não sabia se estava tudo bem com sua filha.

Tentou ligar para Heloísa, que não atendeu.
Já foi pegando o elevador na direção do estacionamento, em direção ao seu carro, e logo ligou para Leonor.

— Que surpresa boa. — Ela atendeu, animada. A voz estava alterada, em tom de flerte.

— Oi.. Tava tudo bem com a Clarinha hoje de manhã? A Helô disse alguma coisa? Ela pediu pra me passar algum recado? — Ele perguntou aflito batendo a porta do carro.

Logo passou a dirigir na direção da casa de Heloísa. Já estava sem o blazer, nervoso. Permanecia com o cenho franzido sem interrupção, e agora falava com Leonor pelo carro que estava conectado com o celular.

— Não.. Ela não disse nada não. Tava tudo bem, claro. Ela tava com bastante sono e não quis comer nada, mas a Helô chegou assim que você saiu..

— Tá bom. Obrigado, eu falo com você depois, tchau. — Stenio se apressou desligando a ligação e focando no trânsito.

Assim que chegou na casa que era deles, entrou sem muitas dificuldades. Por causa da filha e do divórcio amigável, tinham fácil acesso um a casa do outro.

Ele entrou delicadamente para não assustar ninguém, porque sabia que Heloísa podia pensar que era um bandido e a última coisa que queria era levar um tiro, não numa noite em que ele estava tão preocupado.

Foi até a sacada e observou Helô de roupão com a pequena em seu colo, toda largada e deitada, provavelmente dormindo. A luz do luar iluminava a mulher que já segurava a criança com mais dificuldade por estar ficando grandinha.

Helô ninava a garota, cantarolando "eu amo você, menina" bem baixinho. O tom de voz delicado, rouco porém extremamente doce. A delegada era assim em raras ocasiões, raras pessoas mereciam o afeto e carinho dela. Stenio amava quando ela falava assim com ele. A maioria das vezes era quando ela se preocupava com o advogado, quando se preocupava
de verdade. 

Ele tinha sido silencioso. Assim que Heloísa o viu pelo reflexo da porta de vidro, o olhou. Podia sentir seu corpo queimar de tanto ódio. Respirou fundo, e caminhou pelo corredor levando a garota para o quartinho dela. A deixou ali, com o monitor ligado para que Heloísa não tivesse problemas durante a madrugada e pudesse ver que estava tudo bem.

Ela deixou a porta encostada, para evitar a luminosidade e barulho de chegarem até a criança. Tomou coragem e voltou para perto de Stenio, que ela tinha descoberto, agora estava na cozinha de sua casa se servindo um copo de água, agindo como se a casa ainda fosse dele.

Ela trocou a expressão de mãe amável para a delegada carrancuda. Era isso que Stenio merecia dela. Ódio.

— Heloisa, que susto. Que merda, por que você não me atendeu? O que aconteceu?

— Hoje de manhã eu fui buscar a Maria Clara no seu apartamento. 

— Sim, eu sei. A Leonor me avisou. — Ele assentiu. — Tava tudo bem, não tava?

— Eu te pedi ajuda com a nossa filha. Pedi ajuda pra você, o pai dela. Não pra minha prima. — Heloísa cruzou os braços.

Tudo em sua linguagem corporal denunciava a briga que estava por vir. Ele estava confuso, e não entendia de onde vinha tudo aquilo.

— Eu não tinha jeito de remarcar pra outro dia, eu ia perder o cliente e..

— Se eu te ligo dizendo que preciso de você, pai da minha filha, você me diz a verdade.

— Helô, você não tinha quem te ajudasse e eu quis ajudar. — Ele explicou como se fosse óbvio.

— Da próxima vez não tente. — Heloísa levantou a voz e gesticulou para ele parar. Respirou fundo, tentando controlar o tom de voz.

Clara.
Clarinha era o mais importante.
Manter o emocional equilibrado, por ela. Era isso que precisava fazer no final do dia, todos os dias. Era difícil, Stenio fazia ser quase impossível, mas ela tentava. De novo, e de novo.
Não poderia errar. Não depois de Drica.

— Você tá brava porque eu pedi ajuda pra Leonor? Você ia fazer o que? Dizer pra delegacia que não podia ir pra operação? — Stenio se ofendeu. Entre todas as opções, acreditava ter feito o melhor para ajudá-la.

— O que eu faço ou deixo de fazer é problema meu. — Heloísa bateu no próprio peito, com raiva.

— Eu te ajudei! É tão difícil assim agradecer? — O advogado estava ofendido. Bravo. Ressentido. Chateado.

Depois de um dia cansativo se imaginava relaxando e não brigando com a ex esposa. Era o tipo de situação que o divórcio deveria evitar.
Talvez devessem seguir com os papéis logo.

— Eu não quero a sua ajuda. Da próxima vez que você não puder ficar com a Clara, você por favor me informa. Se você for deixar ela com terceiros, eu me viro e faço o que for possível mas eu não quero minha filha com outras pessoas. Entendido?

E então ele percebeu.
Claro, como podia não ter percebido?
Leonor era o Moretti dela.
Ele havia acertado em cheio, porque na verdade tinha feito de propósito. Todo o envolvimento, aproximação de semanas, a estratégia, o imprevisto que veio a calhar, combinado do fato de ter certeza que Heloísa a veria em seu apartamento para comprovar com os próprios olhos o que ela não sabia que estava acontecendo há algum tempo.

— Certo, então eu não posso namorar ninguém? — Ele perguntou, de uma vez.

Heloísa não podia crer na pergunta.

— Você faz o que você quiser com a sua vida, Stenio. A minha filha não vai ficar sozinha com as suas mulherzinhas, nem por conta de uma operação.

— Como se você fosse cancelar algo grande como uma operação. — Ele ironizou.

— Experimenta ver o que eu sou capaz de fazer pela minha filha. — Heloísa deu um passo na direção dele, erguendo o peito e o encarando. Intimidadora, delegada, brava. Linda.

— Além de tudo ela é sua prima.. Você não deveria ficar tão brava assim.

Heloísa deu uma risada irônica. Ele só podia estar brincando.
Justamente, Heloísa pensou. Esse é o problema.
A quem queria enganar? O problema seria qualquer outra mulher que não fosse ela.

Heloísa caminhou até a porta e a abriu para ele.
Stenio se surpreendeu com a irritação da delegada, impressionado. Passou pela porta, sem dizer boa noite. Ouviu a porta bater logo atrás dele, forte.

Tomara que a criança não tenha acordado.

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