Capítulo 8: Além dos limites

129 9 0
                                    

*POV SN*

Caminhar pelos corredores da clínica já se tornou automático para mim. Sigo minha rotina, cumprimento as pessoas, revejo prontuários, mas, ultimamente, meu foco está em outro lugar. Ou melhor, em outra pessoa.

Gabi Guimarães tem tomado mais espaço na minha mente do que deveria. Desde o começo, sabia que lidar com a recuperação dela seria um desafio, mas não esperava me envolver tanto, emocionalmente. Profissionalmente, eu sempre mantive o distanciamento necessário. Mas agora, cada dia parece ser uma batalha para não cruzar limites que, claramente, já estão mais tênues do que nunca.

Hoje, enquanto entro na sala para a sessão de fisioterapia, sinto aquela tensão familiar que vem se intensificando entre nós. Ela já está lá, esperando por mim, e me olha com um misto de expectativa e algo mais profundo. Algo que eu não deveria notar, mas que sinto como se fosse inevitável.

“Pronta para continuar?” pergunto, tentando manter meu tom de voz estável. Mas, por dentro, meu coração acelera.

Ela assente com a cabeça, um pequeno sorriso brincando em seus lábios. Gabi tem uma força incrível, mas é quando sorri que percebo o quanto ela ainda está lutando por dentro.

Enquanto ajusto os aparelhos e reviso as instruções para a sessão, meu pensamento se perde nela. Cada toque, cada orientação técnica se mistura com a sensação de que estamos construindo algo mais do que apenas uma relação entre médica e paciente. E isso me assusta. Como eu, uma profissional com anos de experiência, deixei as coisas chegarem a esse ponto?

Começamos com os exercícios, e eu me aproximo para ajudá-la a manter a postura correta. Minhas mãos tocam seus ombros, e a familiar onda de tensão atravessa meu corpo. Respiro fundo, tentando me concentrar no que realmente importa. Seu progresso. Sua recuperação. Não em nós duas.

“Você está progredindo bem, Gabi,” digo, tentando manter a conversa técnica. Mas sei que ela percebe algo na minha voz, porque, assim que falo, ela me olha com aquela intensidade que me faz querer parar o tempo.

“Eu só estou progredindo porque você está aqui,” ela responde, sua voz baixa, mas carregada de significado.

Essas palavras me atingem como um choque. Sei que ela valoriza meu trabalho, mas, naquele instante, senti que ela estava falando de algo além do profissional. Algo mais pessoal. Eu deveria ignorar isso. Deveria focar no trabalho, seguir o protocolo. Mas como posso ignorar o que está bem na minha frente?

“Você é a responsável pelo seu progresso, Gabi. Eu só estou aqui para guiar você no caminho,” respondo, mantendo o tom neutro, mas sentindo cada fibra do meu corpo contrariar essa neutralidade.

Ela sorri, um sorriso que diz que ela entende mais do que eu estou disposta a admitir. E é nesse momento que percebo que, por mais que eu tente, não consigo mais fingir que nada está acontecendo entre nós.

---

A sessão continua, e eu faço o meu melhor para focar nos exercícios. Mas a presença dela, a forma como ela se move, como me olha, é um lembrete constante de que estou falhando em manter as barreiras profissionais. Gabi está progredindo fisicamente, mas, emocionalmente, nós duas estamos em território perigoso.

Quando a sessão finalmente termina, eu me afasto, limpando o suor da testa e tentando respirar fundo. “Bom trabalho hoje. Amanhã, vamos intensificar um pouco mais,” digo, já me preparando para sair da sala. Preciso de distância. Preciso pensar com clareza.

Mas, antes que eu possa sair, ouço a voz dela, suave, mas cheia de intenção. “Doutora... podemos conversar um minuto?”

Viro-me para encará-la. Sei que deveria recusar, dizer que podemos falar depois, que o tempo é curto. Mas há algo nos olhos dela que me impede de dizer não.

“Claro,” respondo, tentando esconder a hesitação na minha voz.

Ela respira fundo, como se estivesse escolhendo cuidadosamente o que vai dizer. “Eu sei que a recuperação é um processo longo e difícil, mas... ultimamente, eu tenho sentido que há mais acontecendo aqui, entre nós, do que só fisioterapia.”

O coração dispara no meu peito. Lá está. A linha que eu tanto temia. E agora, não há como fugir dela.

Eu deveria dizer algo, colocar um fim nisso antes que vá além. Deveria reforçar que nossa relação precisa ser puramente profissional. Mas as palavras ficam presas na minha garganta, e, pela primeira vez, não sei o que fazer.

“Gabi...” começo, minha voz mais suave do que pretendia. “Você sabe que... nossa relação precisa ser focada na sua recuperação. É isso que importa agora.”

Ela não desvia o olhar, seus olhos fixos nos meus, e eu sei que ela entende, mas não aceita. E, no fundo, talvez eu também não esteja aceitando.

“Eu sei,” ela responde, devagar. “Mas isso não muda o que eu sinto.”

Essas palavras pairam no ar, e sinto o peso delas como uma âncora. Não posso negar o que estou sentindo. Não mais. Mas não sei se estou pronta para lidar com isso.

“Gabi, precisamos ser cuidadosas,” eu digo, tentando manter a calma. “Há muita coisa em jogo aqui. Sua recuperação...”

“Minha recuperação está indo bem, e muito disso é por sua causa,” ela interrompe, a voz mais firme agora. “Mas não estou falando só do físico. Você me ajudou a acreditar em mim de novo, e isso é mais do que qualquer tratamento poderia fazer.”

Eu suspiro, sabendo que ela está certa, mas também sabendo que ceder a esses sentimentos poderia complicar tudo. O silêncio entre nós cresce, e, por um momento, parece que o mundo inteiro parou.

Finalmente, digo: “Vamos... falar sobre isso outro dia. Hoje você fez um progresso incrível, e isso é o que importa agora.”

Ela acena com a cabeça, mas seus olhos ainda estão fixos nos meus. Sinto que essa conversa não acabou, mas por hoje, ambos sabemos que precisamos de tempo para processar. Me viro para sair da sala, o coração ainda acelerado e a mente um turbilhão.

Mas, enquanto fecho a porta atrás de mim, sei que, cedo ou tarde, terei que enfrentar o que está acontecendo entre nós.

Cᴏʀᴀçãᴏ ᴇᴍ ᴊᴏɢᴏOnde histórias criam vida. Descubra agora