O calor da lareira envolve meu corpo, contrastando com o frio cortante que enfrentei nas últimas vinte e quatro horas. Ainda assim, o aconchego do ambiente não traz descanso à minha mente. Andrei foi quem me trouxe até aqui, guiando-me pelos corredores do bunker com uma inusitada gentileza. Ao chegarmos à porta, ele a abriu sem pressa, mas antes que eu pudesse dar um passo inteiro para dentro, interrompeu-me, fechando-a parcialmente.
- O chefe vem logo - advertiu, sua voz carregada de desdém - Se você mexer em qualquer coisa, eu arranco os seus cabelos fora -
Minha resposta vem no silêncio afiado do meu olhar, fuzilando-o sem precisar de palavras. Ele apenas sorri - um sorriso grotesco, repulsivo, que tenho o desprazer de testemunhar tão de perto - e então me cede a passagem. Adentrei a sala finalmente, ouvindo as chaves girarem do lado de fora, trancando-me ali dentro, mas isto não me desespera.
Imediatamente caminhei pelo cômodo, procurando por algo que pudesse me indicar para onde levaram os outros. Dou sorte, pois há um mapa do bunker bem ao lado da porta, provavelmente já estava aqui quando ainda cumpria a sua função original. Observo os cômodos e corredores desenhados, mas na realidade, não há nenhuma inscrição que ajude a identificar um lugar específico onde eles poderiam estar.
Desisto, e me limito a esquadrinhar o restante do ambiente com curiosidade. As luzes amareladas são inegavelmente aconchegantes, e esta é uma espécie de escritório. Numa parede há uma lareira e um sofá confortável logo em frente. No centro, uma mesa e uma poltrona bonita. Nos arredores, muitas estantes de livros.
É delas que me aproximo primeiro.
Observo os títulos enfileirados, diversos temas, desde gramática russa até história ocidental. Livros enormes, livros menores. Eu deslizo os dedos pela lombada de cada um deles, sentindo a textura dos títulos gastos pelo tempo. Dostoiévski. Edições comemorativas. Meu coração bate um pouco mais forte. Há algo reconfortante nesse detalhe, como se, no meio do caos, ainda houvesse um fragmento de humanidade a ser encontrado.
Meus olhos percorrem os nomes com reverência: "Crime e Castigo", "Os Irmãos Karamázov", "O Idiota"... Clássicos russos, carregados de angústia e filosofia. Me pergunto se Makarov realmente os lê ou se são apenas ornamentos para exibir uma erudição calculada.
Minha mente vagueia por entre os pensamentos desta natureza. Como poderia um homem com essa sensibilidade literária cometer tais crimes? Talvez essa fosse a razão de sua fala ser tão atraente, e a contra gosto, assumo que sua beleza não reside na simetria, mas na intensidade de sua presença.
Me pego lembrando de instantes atrás, do ar tão carismático com o qual falava. De repente, como um anúncio de perigo, o arrepio repentino me alerta de que algo está errado. Um instinto primitivo me força a virar ligeiramente a cabeça num suspiro.
E ali está ele.
Silencioso como um predador, observando-me, encostado contra a porta agora fechada como se avaliasse cada mínimo detalhe da minha presença. Não ouvi passos, não ouvi a porta abrir. Apenas sinto a presença dele, densa, atenta.
Meu corpo se enrijece por reflexo, e eu afasto as mãos de seus livros quando me viro completamente, encontro seus olhos fixos em mim. Um calafrio percorre minha espinha. Makarov não é apenas silencioso - ele é espectral, um fantasma movendo-se à margem da realidade. Seu rosto está calmo, mas há algo de insondável em seu olhar. Um vestígio de diversão, talvez, ou uma curiosidade soturna.
- Gosta de Dostoiévski? - ele pergunta em russo, a voz macia, despretensiosa.
Demoro um segundo para me recuperar e responder, ainda ajustando minha respiração ao leve susto.
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edelweiss | a könig storie.
FanfictionKönig não podia escapar. O passado sulfúreo que emana dos muros e que flutua nas ruas de Viena o perseguiria para sempre. A luz amarela dos postes antigos que resplandecem nas calçadas molhadas, e evocavam a necessidade precípua que todo austríaco c...