Uma hora depois

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Uma hora depois

Ele me convenceu.

Não deveria ter sido tão fácil, mas foi.

Eu acreditei nele e me preparei psicologicamente para ler as cartas quando minha mãe entrou no quarto e quase teve uma síncope nervosa por encontrar sua filha, um garoto e uma cama desarrumada.

Tive que ouvir aquele velho discurso sobre preservar-me até o casamento, ou ao menos esperar até encontrar a pessoa certa como William havia feito com Melody.

Ele conseguia manipular todas as pessoas com o seu jeitinho inocente.

Como esse garoto conseguiu ser tão sínico?

Depois que Jason foi embora, tive que garantir a ela que eu ainda era virgem e que estava me cuidando muito bem. Comentei que ele havia passado apenas para pegar os seus videogames que estavam com Will, algo que ele novamente esqueceu, pelo menos havia levado consigo o datilógrafo.

Eu não me sentia bem mentindo para minha própria mãe, porém eu estava ficando com poucas opções; não queria contar a ela sobre as cartas que eu ainda não havia lido ou sobre alguém ter tentado me matar.

Era como se eu estivesse presa a algo tentando me soltar, era em vão. Tudo me levaria a outra mentira.

Naquela tarde, antes de eu abrir e ler as mensagens escritas por meu irmão defunto, fui falar com meu pai, queria me desculpar pela maneira que havia agido anteriormente e ver se ele também iria.

Abri a porta do escritório, ele estava com a mesma roupa de antes, ainda mais suja. Ou ele não havia tomado banho, ou ele só tinha aquela roupa, ou ele tinha roupas muito parecidas. Rezei pela terceira sabendo que a primeira era inevitável.

— Oi pai — comentei já entrando e olhando ao meu redor, o lugar estava ainda mais bagunçado e agora ele estava trabalhando em algo que parecia ser uma fusão de lâmpada com computador.

Não sei como eu sabia daquilo, acho que pelo simples fato de haver uma caixa cheia de lâmpadas queimadas em cima da mesa e computadores antigos, quase da época do datilógrafo.

Ele não respondeu, continuou trabalhando. Não olhou na minha direção e nem se prestou a sorrir por ouvir a minha voz. Eu sabia que ele e Will eram próximos, porém eu também existia.

“Ele morreu.”

E eu estava ali.

Viva.

Bem na sua frente.

E ele não olhava para mim.

— Papai — murmurei esperando por alguma reação dele, algo que me fizesse pensar que ele merecia o pedido por perdão e que ele se importava comigo, não encontrei.

— Eu estou trabalhando — uma das frases mais longas que ele havia me falado em meses, desde o funeral.

— É? E eu estou aqui esperando para falar com você, há meses! — eu disse andando na direção dele furiosa — William morreu, mas eu estou aqui, sabe?

— O que você quer Elisabeth? — ele me olhou, mas não me viu, apenas virou o rosto e ficou encarando, porém pelo vazio de seus olhos eu suspeitava que ele não estava me vendo.

— O que? Agora eu não posso mais falar com o meu próprio pai?

— Saia daqui — ele se virou e voltou a trabalhar.

Meu rosto queimou em chamas. Minha garganta inchou em lágrimas. Minhas orelhas vibraram de ira. Minhas mãos de fecharam de dor.

— Eu sinto muito pai — comentei tentando arrancar uma reação dele, algo que era quase incomum em nossas conversas — eu sinto muito por ter sido Will que morreu e não eu. Mas você já perdeu um filho. Ele está morto. Eu não estou, e eu sinto que perdi você.

— Não fale besteiras — ele resmungou queimando sua mão na lâmpada que estava com hologramas ao longo de sua lente amarelada pela luz.

— Besteira? Eu fiquei perdida durante meses sem saber como seguir em frente! Durante meses eu precisava de alguém para me dar a mão e dizer que ia tudo ficar bem. Eu queria que você me ajudasse, mas você não estava lá — eu apontei para a porta, em direção do meu quarto — o velório acabou há sete meses. William nos deixou há sete meses. Está na hora de voltar para casa.

— Voltar para casa? — ele me olhou depois de ter quebrado a lâmpada em sua própria mão, havia feito um pequeno corte em seu polegar — voltar para esta casa em que ele cresceu? Voltar para a vida em que ele não está? Voltar para as memórias que me fazem lembrar ele? Voltar para esta vida que me assombra por eu não ter impedido que ele caísse no mar? Eu não tenho vontade de voltar para casa, Elisabeth.

— Mas eu estou aqui, aqui em casa — abri meus braços, não para um abraço, mas para mostrar a mim mesma, a sua filha — eu sei que sou do sexo errado, que mesmo sendo irmã mais velha de Will nós sempre fomos diferentes, mas você não pode me deixar sozinha!

— Vá embora — ele voltou a trabalhar sujando seu material em sangue antes de pegar um lenço e um curativo para tratar do ferimento.

Andei até a porta e quase a fechei atrás de mim, porém eu parei e a abri novamente para uma última olhada, para saber se ele estava esperando por mim ou se ele estava olhando em minha direção.

Nem um, nem outro.

Ele havia voltado para o trabalho, como se eu não tivesse entrado naquele escritório.

— Vai ser para sempre assim? Eu nunca terei meu pai de volta? — utilizei a terceira pessoa apenas para impessoalizar a frase.

— Algum dia ele estará pronto para voltar — pela primeira vez não me senti ofendida com as suas palavras.

— Você sabe... as vezes pode ser tarde demais — comentei fechando, delicadamente, a porta atrás de mim para andar até o meu quarto.

Deitei em minha cama, abracei meu travesseiro e me coloquei a chorar.

As cartas poderiam esperar.

Eu havia acabado de perceber que junto a Will, eu também havia pedido meu pai.

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