14. Ramona

119 15 0
                                    

Às vezes eu queria poder ser um abelha. Digo isso com toda certeza. Se, antes de nascer, me perguntassem como eu gostaria de vir ao mundo, eu diria que dentro do corpo de um desprezível inseto. Recolhendo pólen, fazendo o mel e trabalhando com centenas de outras abelhas –todas biologicamente iguais a mim. Eu não pararia para observar a colmeia onde viveria e não desejaria uma maior por apenas desejar, já que, aquela seria tudo que eu precisaria. E óbvio: eu não teria que ter aquelas conversas sem nenhum sentido sobre o tempo apenas porque, bem, conversar sobre o tempo no elevador era algo de suma importância.

Então imagina minha surpresa quando, depois da conversa estranha sobre "O tempo está estranho hoje, será que vai chover?" eu vejo, sentada na recepção, uma cabeleira ruiva já bem conhecida. O que ela faz aqui não faço ideia, principalmente porque este é meu horário de almoço. Meu real horário de almoço. E ela não deveria estar aqui. Ela não sabe que este é o meu horário de almoço e, no entanto, está segurando uma sacola com algo que tenho certeza que é meu almoço. Isso cheira nada mais nada menos que confusão na certa. E meu estômago ronca.

Aqui outra vantagem de ser um abelha: meu cérebro não estaria à vapor procurando uma desculpa razoável para as perguntas de Nina enquanto sigo em sua direção.

–Nina, que surpresa boa! Me avisaram que estava aqui, desci o mais rápido de pude.

Meu único pensamento? Não fique vermelha, não fique vermelha, não fique vermelha.

–Que estranho –ela rebate–, não pedi para anunciarem meu nome, como eles me conhecem, alias?

–É... E-eles mantem uma ficha com amigos próximos, sabe? No caso deles vierem aqui. Muito gentis, não?

Mordo a parte interna da minha boca. Óbvio que ela sabe que estou mentindo. Está para nascer ser humano mais inútil que eu na hora de mentir. Eu só falo bobagens, mais do que o normal. Nina revira os olhos com minha tentativa frustrada de parecer convincente. Olho para os meus creepers de couro enquanto entorto meus pés por alguma razão.

–Mona, eu trouxe seu almoço. –ela estende a sacola na minha direção.

–Então... não está curiosa para saber o porquê? Quero dizer, se está aqui agora já sabe que não entro no horário que digo que entro, né?

–Só vim te trazer o almoço.

Encaro seus olhos coloridos com muito afinco. Abduziram minha amiga, tenho certeza! Sempre soube que esse dia chegaria. Porque, para Nina, a pessoa mais curiosa que existe na face da Terra, não querer uma explicação, é o apocalipse se aproximando. Ou os polos magnéticos se inverteram de vez. Não sei, alguma alternativa é a certa.

Engulo em seco novamente, respiro fundo e penso no que dizer.

–Obrigada. Olha... desculpa se faço isso, mas a minha vida é uma confusão e eu às vezes precis...

–Precisa de um tempo sozinha –completa ela e logo depois me abraça –Eu te entendo.

Fico tão feliz por Nina ter esse jeito mãezona que sabe de tudo. Fico feliz também por tê-la comigo, por que sei que nossa amizade é extremamente forte. Só não sei se o suficiente para ela entender o que fiz há cinco anos.

Ela tem esse jeito isso de não precisar de palavras, essa coisa louca de entender as pessoas. Eu queria ter isso. Porque, se tem uma coisa nessa vida que eu realmente não entendo: é o ser humano.

Vamos até uma lanchonete próxima e disparamos a conversar sobre coisas aleatórias e isso me deixa muito feliz. Essa capacidade de esquecer os momentos, de não ficar remoendo. É tão simples falar com ela, parece que ainda estamos no ensino médio discutindo sobre o quão eu não me achava preparada para o vestibular.

**

Volto ao trabalho bem mais leve porque, na minha cabeça, é como se eu tivesse contado tudo a Nina. Ela nunca precisou saber todos os detalhes para entender. Ela é um turbilhão de emoções e sentimentos e está para nascer alguém mais sensível.

Me concentro no meu trabalho novamente, mas minha mente vaga por tantos lugares que é complicado conseguir achar erros. Já estou tão acostumada com eles que, quando os vejo, parece ser parte da minha vida. Um parente próximo até.

Meus olhos já doem quando o diretor executivo manda me chamar. Aquele louco outra vez, mereço. E ainda nem terminei de corrigir o programa. Sigo até sua sala de forma bem lenta, a verdade é que não quero entrar ali. Primeiro porque estou com medo de ser demitida, já que olha só: o país está em crise e no final das contas, o que eu faço é só adiantar o trabalho dos engenheiros de software.

A secretária me pede para entrar na sala de reuniões. Sala de reuniões. Sala de reuniões. Pisco várias vezes seguidas para ver se eu entendi mesmo o ela disse. A única coisa que consigo pensar é: estou mais ferrada no que achei que estaria.

Entro na sala suando frio. A mesa é de madeira escura e o diretor está sentado na ponta, rodeando por várias outras pessoas desconhecidas. Aquilo tudo parece assustador demais. Gelo ao pensar que eles descobriram o programa que desenvolvi para fazer meu trabalho. Ou até mesmo que usei a base do sistema operacional no Linux para fazer meu próprio e que, mesmo ele estando cheio de erros, eu o uso no computador da empresa e ah, meu Deus. Eu estou ferrada. Engulo em seco e sento na cadeira próxima.

Tudo em meu ser grita: não faça contato visual, não faça. Você não sabe mentir. Você será demitida. Não vai ter dinheiro para viver. Terá de morar com os seus pais. Vai ter que desistir do mestrado. Vai. Ser. Professora.

–Ramona Martin, você foi promovida!

Giro minha cabeça lentamente na direção dele e minha pulsação está tão forte que acho que estou sofrendo um taquicardia.

–Oi? –é a única coisa que consigo dizer.

–Bem, você cuidou muito bem da segurança da empresa naquele dia que fomos vítimas de um ataque hacker. E bom... estamos em um ano complicado. Tempo de cortar ao máximo os gastos e decidimos não investir mais contratando empresas para cuidar da segurança do prédio, nada de terceirizar o trabalho. A partir de hoje, A companhia Cisne terá sua própria ala de segurança.

Todos aplaudem. Acho que eu também. Todo que eu penso é: Não. Vou. Ser. Professora. Um sorriso instantâneo aparece em mim. Eu sou toda sorriso. Nos momentos seguintes eu nem sei mais o que acontece. Assino alguns papéis. Explico um pouco sobre TCP/ IP e sobre protocolos típicos de inter-redes e no final nem acredito no meu salário.

Preciso analisar os sistemas, levantar as vulnerabilidades, criar mapas de risco e fazer um projeto para solucionar e aumentar a segurança de todos os envios de informações naquele prédio e enviar tudo para o chefe desse novo departamento que também vai receber esse mesmo conteúdo de todas as outras filiais. Tudo até próxima segunda, obrigada. Acho que estou enlouquecendo.

Mando uma mensagem para Nina, Luke e até mesmo para Clare. Eu preciso comemorar aquilo. Meu. Deus. Isso que corre na minha veia é um tipo de empolgação tão rara que não sei o que fazer, não sei nem como tirar meu sorriso do rosto.

Isso dura até eu lembrar do meu sonho, do meu mestrado e de como eu lutei tanto para aquilo. Eu teria muito trabalho, muito mesmo. Não é como se eu pudesse criar um programa para examinar os os protocolosX25, Frame Relay, ATM e etc. Programas são hackeados. E o pior que ainda não resolvi o problema de estar sem orientador. Mordo os lábios com força quando, mesmo de relance, penso em desistir da minha carreira acadêmica.

Tudo bem, é tudo que eu sempre quis. Mas vou receber mais! E também estou fazendo algo que gosto. Pode ser que, com o passar dos anos, eu seja promovida e alavanque minha carreira. Acho que, até lá, não vou mais me importar de trabalhar entre quatro paredes vestida em roupas desconfortáveis.

Sento no banco do metrô há caminho da universidade pensando sobre isso.

Eu escolhi fazer física por conta e risco, briguei com minha família e lutei por um sonho louco e tudo que estou pensando no momento é em como a vida é injusta por me fazer escolher.

E em como eu quero ser uma abelha.


Vinho TintoOnde histórias criam vida. Descubra agora