18. Clarice

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Simplesmente decidi aceitar o fato que meu ex-cliente é meu professor. Decidimos ignorar todas as palavras e ofensas e continuar as aulas numa boa. Claro que minha língua afiada dava o ar da graça às vezes, mas ele relevava. Decidimos deixar o passado no seu devido lugar. Tento absorver tudo que ele pode me ensinar, dentro e fora da sala de aula. Me arrisco dizer que até somos amigos.

- Você tem que preparar seu psicológico, não vai ser nada fácil às vezes. Alguns diagnósticos são muitos diretos, o paciente e a família terão que saber a verdade nua e crua – Fernando fala enquanto faz uma linha de ketchup no seu sanduíche.

Estamos almoçando no subway. Não tive coragem de falar para ele que eu odeio essa lanchonete, não entendo o porquê a pessoa vai comer um sanduíche e pede com salada. Preferia ir no McDonald's e comer um Grand Big Tasty Bacon com muita batata frita. Mas eu sou uma médica, tenho que dar o exemplo... Abrindo uma exceção, para as comidas da Nina, claro!

- Eu sei, não me importo com os sentimentos desde que eu era jovem... Meus amigos até reclamavam às vezes. Mas tive uma quebra na estrutura familiar, acostumei a culpar meus pais por isso. Isso me ajudou muito na prostituição, e na escolha da minha profissão – Falo enquanto tiro os alfaces do lanche. Não deveria ter pedido já pronto, merda.

- Eu percebia. Gostava disso em você, sua frieza na cama. Isso só me fazia querer fazer você gostasse daquilo também. Como se eu fosse capaz de derrubar suas enormes muralhas. – Diz e sorri enquanto fala a última frase.

- Não diz essas coisas. Não combinamos de tentar esquecer? Então, dá pra tentar cumprir o combinado.

- Desculpa, mas não dá. Foi uma fase boa na minha vida, não dá pra simplesmente esquecer do nada.

- Eu sei... Sabe que os últimos meses que eu continuava a trabalhar eu ia por que eu queria. Eu sinto vergonha, repulsa e até nojo, como eu poderia querer aquilo? Não tinha mais desculpa para o trabalho, eu estava ali por gostava. – Digo e parece que um peso gigantesco sai de minhas costas.

Precisava falar isso pra alguém.

Ainda não sinto que devo falar a verdade para as meninas, mas o dia está próximo. Não vou aguentar esconder isso pra sempre. As mentiras vão te consumindo, domina seu corpo e a cada dia suas muralhas vão se degradando. O peso na consciência já está me matando.

Fernando não sabe o que me dizer, me encara com um olhar sem expressão alguma. Queria conseguir decifrar cada linha do seu rosto, mas ele não permite isso no momento.

- Bom, vou indo - Digo me levantando, e pegando minha bolsa – Depois manda mensagem. Ah, plantão hoje?

- Sim, senhora!

Nos despedimos com um abraço, saio da lanchonete e vou andando pela Avenida Paulista. Chego no cruzamento da Paulista com a Rua Augusta. Desço a rua e chego na frente da boate.

BlueCherry Club.

Sempre achei esse nome escroto, mas dava lucro. Tinha clientes importantes, engravatados e ricos, homens que se matam de trabalhar para que suas famílias tivessem conforto e segurança. Mas eles não eram felizes, o único momento no dia que eles tinham um pingo ou, pelo menos um momento de "alegria", era na hora que eles passavam por essas portas.

Entro na boate, tudo está claro e calmo. Não abriu ainda, as meninas devem estar no camarim.

Me aproximo do bar e sento em um dos banquinhos de frente para o balção. Não vejo nenhum dos meninos que servem as bebidas.

Pego meu celular na bolsa e mando uma mensagem para a Cláudia, para avisa-lá que estou aqui.

Há alguns dias ela me mandou algumas mensagens, dizendo que queria encontrar comigo, queria falar algo importante. Então aqui estou eu.

- Quem é viva sempre aparece. Não é mesmo, Clarice? – Diz Sophia, uma antiga amiga e colega de trabalho.

Levanto e a abraço apertado. Conheci muitas pessoas enquanto trabalhava neste ramo, mas foram poucas que realmente valia a pena ter uma amizade.

- Sophia! Que saudade, desculpa não vir de visitar. Espero que me entenda. – Falo enquanto nos desvencilhamos – Sabe me dizer se a Claudia está aqui ? Não a vi em lugar algum ainda.

- Não... Ela até estava, mas teve que sair urgente, apareceu um problema. Acho que alguma menina acabou engravidando de um cliente e... Ah deixa, você não veio pra saber de problemas. – Ela vai pra trás do balção e começa a preparar uma bebida – Mas, me diz. O que você quer com a bruxa?

Volto a me sentar no banquinho.

- Ela me mandou umas mensagens, dizendo que queria falar comigo. Ah doida, eu não posso beber, vou fazer plantão hoje. – digo com dó no coração, adoro as bebidas da soph.

- Ai! Desculpa aí, doutora...

- Não trabalhei aqui por nada, e sim, agora eu sou doutora, segura essa. E estou estudando para conseguir minha especialidade em oncologia – Falo orgulhosa.

Ela finge limpar uma lágrima imaginária.

- Que orgulho! A puta que virou médica. – Depois que as palavras saem por seus lábios, damos algumas risadas. Isso não deixa de ser verdade. Mas me orgulho, não foi nada fácil pagar por meus estudos, tive que trabalhar muito. Noites e mais noites dentro dessa boate. Cada centavo tinha um destino certo.

No meio das risadas, sinto meu celular vibrando. O pego dentro da bolsa, coloco a senha e vizualizo a mensagem. Fernado.

"Clare, estou no hospital. Mais precisamente na emergência. Apareceu um caso interessante. Uma criança. Pedi alguns exames, mas estou desconfiado de câncer. Vem, vai ser bom você acompanhar esse caso de perto.

Seu Fê!"

De novo esse negócio de "seu fê", preciso conversar com ele.

- Soph, preciso ir. O dever me chama – Me despeço dela correndo.

- Uhm! Que chique, aparece mais vezes – Ela me abraça – Gostei de te ver.

- Venho sim, beijos.

- Tchau, doutora. - Ela grita quando já estou perto da porta.

Volto para o hospital andando mesmo. Meu primeiro caso na minha área, estou bem nervosa. Ainda mais que é uma criança.

Quando chego, pego meu jaleco jaleco na bolsa e vou para a emergência. O hospital é bem grande, e está cheio nesse fim de tarde. Crianças, idosos e adultos, todos reclamando de algum tipo de dor.

Avisto o Fernando em pé em frente a uma maca, conversando animadamente com uma garotinha. Chego mais perto e vejo o quão linda ela é, sua face tem pequenas sardinhas e seus longos cabelos tem cor de mel.

Me aproximo deles, e de cara vejo seu rosto pálido e cansado. Seus braços e pernas apresentavam algumas manchas vermelhas. Seu pequeno corpo está magro e ossudo. Fernado diz algo em seu ouvido e ela se desmancha de rir, mas suas gargalhas é interrompida pelas suas tosses.

Entretanto, o brilho de seus olhos e o alegre sorriso está presente nessa pequena área do hospital. Não sei seu nome, nem quem são seus pais ou onde ela vive. Mas estou encantada por essa pequena criatura de cabelos claros. Merda! Preciso ser profissional.

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Olá, gente! Bom, primeiramente devo a vocês desculpas. É que a criatividade não é algo que se pode impor, ela vem quando quer! HAHA. Além de que, novo ano de escola, enem chegando e... já sabem!

Espero que tenham curtido o capítulo (e pego a dica sutil)!


Vinho TintoOnde histórias criam vida. Descubra agora