Banzo, Ici e Là

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Aqui em Paris, as pessoas sorriem pouco e nem sempre uma cara alegra é bem vinda

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Aqui em Paris, as pessoas sorriem pouco e nem sempre uma cara alegra é bem vinda.


Tudo aconteceu em uma sexta-feira da paixão. Vai ver foi isso. Ou talvez por ter acordado cedo, o que detesto. Mas senti um certo banzo, uma sensação esquisitinha, um desconforto ligeiro, algo que não consegui definir. O sol estava lindo, mas a temperatura baixa e os ventos gélidos — como avisava a meteorologia francesa — me diziam que o melhor lugar para ficar era em casa mesmo, pelo menos nas próximas horas. Foi o frio? Na minha cabeça passaram vários questionamentos. Será que começo a ficar entediada? Não sou turista, mas não sou ainda uma moradora que enfrenta todos os dias o frio para ir trabalhar. Não sou turista, mas ainda quero andar, andar, andar e me achar mais do que me perder. Não sou turista, mas não sou parisiense. O que sou? Isso é ou não mais do que motivo para entediar um ser humano?

Fazer amigos em Paris não é fácil — isso eu já havia percebido. Os franceses não são especialmente afáveis e passei muitos dias conversando com motoristas de táxi, lojistas, com quem podia ter um diálogo mesmo que formal. Puxava assunto para treinar o francês e para fingir pelo menos que interagia com os habitantes da cidade. Sou dada por natureza, daquelas que irrita amigos mais tímidos ou mesmo a minha filha IG: "Você fala com todo o mundo, um dia vai levar um fora". Se vivi seis décadas desse jeito não vai ser agora que vou mudar. Mas em Paris, confesso, tive medo da famosa e alardeada cortada, que poderia vir a qualquer momento. Minha amiga LO, que é marroquina, mas morou anos em Paris, um dia me contou que estava andando pela rua com a filha, um bebê para lá de simpático, que acenava para todos, e foi interpelada por uma senhora que disse que ela devia cuidar melhor da criança para que ela parasse de falar com as pessoas na rua. E senti na pele, quando almoçava com um amigo, PP, e ríamos muito até uma senhora "magra e desagradável" — como ele bem definiu — dizer que estávamos atrapalhando a sua refeição e que ela estava até com dor de cabeça com nosso alarido. Ela estava incomodada com a nossa felicidade. Ouviu o que não queria do meu amigo, que mora há 25 anos em Paris e sabe rebater como ninguém a uma bufada à francesa.

 Ouviu o que não queria do meu amigo, que mora há 25 anos em Paris e sabe rebater como ninguém a uma bufada à francesa

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Nem mesmo na aula de dança, onde existe um contato físico bem próximo, a simpatia é norma. As pessoas que fazem dança latina — salsa, bachata, samba — são mais afetuosas. As que preferem o swing — a dança, bien sûr — não se mostram muito interessadas nos parceiros. Especialmente se eles são de outro lugar, là bas. Aliás, a linguagem é tudo, e francês gosta de afastar até mesmo nas expressões que usa — esta é mais uma observação pseudosociológica e linguística. Existe o ici, que é a mais perfeita tradução do aqui. Existem ainda o , que é o nosso lá, e o là bas, que é bem longe, acolá. Mas os franceses nunca estão ici, mesmo que estejam na sua frente. Je suis là. Mas como, você está ici? Desisti de entender. Eu estou aqui, mas de fato estou lá, não me aborreça — parece ser esta a mensagem.

Tudo isso me causava uma sensação no estômago, uma tristeza, um pensamento sombrio de que talvez tivesse feito a escolha errada. O impressionante é que, como veio, o desconforto foi embora. Era passageiro: bastou sair na rua, comer um macaron, andar pelo Jardim de Luxemburgo para o banzo ir se esvaindo na paisagem. Decidido: se eles são casmurros, problema deles. Decidi: eu que sou de là bas vou aproveitar o que posso da cidade que considero tudo de bom. E que eles continuem là.

Quando entrei no metrô de volta para casa, algo mágico aconteceu: um homem em pé cantarolava uma música, bem baixinho, mas o sussurro me chamou atenção

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Quando entrei no metrô de volta para casa, algo mágico aconteceu: um homem em pé cantarolava uma música, bem baixinho, mas o sussurro me chamou atenção. Prestei bastante atenção, me concentrei e ouvi versos familiares: 

tristeza                                                                                                                                                                                             por favor vá embora                                                                                                                                                                         minha alma que chora. 

Levantei os olhos lentamente e vi um homem absolutamente deslumbrante, com um violão nas costas. Francês com certeza, o nariz grande denunciava. Ele se aproximou da porta, olhou para mim. Eu sorri. Ele sorriu também e saiu pela porta. Se fosse um filme, eu teria 30 anos a menos e nós estaríamos profundamente apaixonados. Na realidade foi um momento delicioso de cumplicidade. Ele sabia que eu tinha ouvido a música e gostado. Banzo modo off total. E sorriso já é quase o começo de uma amizade.

Volta e meia havia mais um pouquinho de banzo. Pouco, mas suficiente para me lembrar que nada é só alegria: nem mesmo 100 dias em Paris. Sempre, porém, nos dias frios, cinzentos e com chuva — coisa que carioca detesta. Com o sol, tudo se iluminava. Paris ensolarada muda completamente o modo de ser dos parisienses. Antes cabisbaixos, cheios de casacos e taciturnos, eles invadem os parques, usam bermudas e até arriscam um sorriso pálido quando os olhos cruzam com os outros seres felizes e aquecidos. Dá para entender, pois sofrem meses com as temperaturas baixas. O sol aparece em um dia e some no outro. Eu, por exemplo, não ousei engavetar totalmente as roupas de frio pelos 100 dias, mas comecei a ficar confiante diante da alegria dos meus companheiros parisienses quando um dia era de sol. Podia ser até que fizesse um amigo.

Não sei se um anjo torto disse amém, o sol esquentou mais ou certa miopia atacou transeuntes, mas fui "cantada" literalmente por um motorista de táxi. Bonitinho, jovem, menos de 40 anos — quase uma criança para mim — começou a conversa como sempre começam as conversas em Paris: falando do tempo. La chaleur, o calor, ocupou cinco minutos da conversa. Quando falei que até gostava do frio porque era brasileira, o assunto enveredou para a beleza das minhas compatriotas e o fato de eu parecer europeia. Até Gisele Bündchen, conhecida mundialmente, teve sua vez. Não sei bem como acabou na pergunta se eu era casada (coisa muito incomum porque francês não faz perguntas como essa para desconhecidos). Quando respondi que era separada, ele me garantiu que meu marido devia ser maluco porque como ele podia ter deixado uma mulher tão bonita. Ai, meu Deus, aonde vai dar esta prosa? E aí começou a falar na segunda pessoa. Ui, ficou íntimo. Todos sabem, mas não custa lembrar, que os franceses usam o vous (vós) para interagir com os outros. Para usar o tu é preciso intimidade e existe até um verbo para isso — tutoyer (je tutoie/tu tutoies/il tutoie/nous tutoyons/vous tutoyez/ils tutoient). Ou seja, como um monarca, o indivíduo concede ao outro o direito de chamá-lo de tu.

Voltando ao que interessa, a cantada, que tergiversei muito. Mais um quarteirão, ainda bem que perto da minha rua, ele se mostrou completamente estupefato quando falei que viver em Paris era meu presente de 60 anos. NON! Garantiu que não me dava mais de 45. Aí tive certeza que ele havia enlouquecido ou a miopia era galopante. Tudo finalizou com um convite para tomar um vinho, caso eu desse meu telefone para ele. Declinei gentilmente, agradeci os elogios e saí, uma quadra antes da minha casa, que sou carioca e desconfiada.

Uma coisa, porém tenho certeza: eu me senti quase uma Gisele. E esta sensação sempre será muito boa, especialmente porque, como afirmam muitos e a literatura corrobora, as mulheres depois de certa idade passam a ser invisíveis. O taxista podia estar querendo zoar com uma turista. Podia também estar pensando em descolar um lugar no Brasil por causa da Copa do Mundo. Ou, como resumiu minha amiga MIF, ele pode simplesmente ter realmente gostado, até porque o tempo foi curto para elaborar planos malévolos. Para mim, os motivos não importaram, porque o ego agradeceu veementemente esse sopro de visibilidade. E, afinal, simpatia é quase amor.

Ici sou feliz. E também. Com sol ou chuva.

100 Dias Em ParisOnde histórias criam vida. Descubra agora