Aqui em Paris existem muitos franceses que não são de Paris e quase divertem tanto como os outros turistas. Ou não.
Impressionante a capacidade dos seres humanos de repetirem o mesmo erro ao longo da vida. Eu, por exemplo, cada vez que caio em um programa organizado para turistas, juro solenemente que nunca mais. Não é preconceito contra grupos, isso não me incomoda, mas pela organização que pressupõe que todos são ovelhas que farão tudo que seu pastor mandar. E aí tome de levar para restaurante ruim, de prolongar algo que poderia durar 20 minutos e se arrasta por duas horas e meia e de informações desnecessárias e músicas insuportáveis. Eu sei de tudo isso, mesmo assim, toda animada, resolvi fazer um passeio pelo Canal Saint Martin. Como não conhecia ninguém que tivesse barco em Paris — e mesmo quem não tivesse — resolvi ir na opção segura: uma excursão guiada de 2 horas e meia organizada pela Canauxrama. Escolhi o dia em que ia fazer bastante sol — em Paris a meteorologia funciona —, comprei meu bilhete pela internet, fui à papelaria imprimi-lo e fiz a reserva por telefone, o que era obrigatório. Agora, pensei, é só correr para o abraço, ou seja, entrar no barco e desfrutar uma aprazível tarde. Tinha a possibilidade de escolher dois pontos de embarque: Bastille ou La Villete. Bastille, claro, a duas estações da minha casa.
Começou a ficar estranho quando cheguei ao ponto de embarque. Fagueira, ignorei a fila enorme na bilheteria do Canauxrama e me dirigi para o barco, dando um olhar com certo desprezo para aquelas pessoas que queriam comprar na hora. No barco, fui informada que devia aguardar... na fila. Como assim? Fui para a fila debaixo do sol inclemente (era inclemente mesmo, doía na pele), onde alguns franceses já bufavam, ligavam para a operadora do barco, reclamavam, mas era assim mesmo: quem tinha comprado e reservado precisava passar por ali, ter seu nome conferido, o bilhete impresso (que me custou 3 euros na papelaria) trocado por um ticket. Eu me lembrei da antiga piada que o alemão é um português que aprendeu matemática. O francês é um português que aprendeu a cozinhar com manteiga. Em todas estas nacionalidades, a inflexibilidade é a norma: tenta pedir uma pizza de dois sabores em qualquer um destes lugares...
Depois de 30 minutos, hora de ir para o barco e aguardar sob o sol que insistia em ser inclemente. Ainda estava otimista: "Quando o barco andar vai ser uma delícia, o ventinho, um passeio pelo canal, quase Veneza". Finalmente todos os incautos trocaram seus bilhetes e finalmente partimos. Entramos em um túnel escuro de pedra, por baixo da rua, que volta e meia era iluminado por grandes buracos no teto. "Ah, que lindo...". Depois de 15 minutos e 1.230 buracos não tinha mais graça alguma. Mas saímos enfim, e "oh, que beleza de paisagem", pessoas deitadas ao longo do canal, pontes e, "que interessante", uma eclusa, A primeira vez que vi uma eclusa foi no Rio Nilo e fiquei impressionada. Uma eclusa é uma obra de engenharia que permite que barcos subam ou desçam os rios ou mares em locais onde há desníveis. Era em um navio e no Egito. Naquele barco de passeio em Paris, como seria? Um grande portão abre, entra barco, enche de água, o barco sobe, segue adiante, fecha outro portão. Se não é assim, é mais ou menos. O processo não é longuíssimo, mas quando alguém avisou que era a primeira de quatro, pensei: "f....eu". Então o passeio é isso, entra em eclusa, sai de eclusa, anda um pouquinho, para um pouquinho. Em uma hora e meia estava todo mundo entediado no barco. As crianças mal-humoradíssimas, os velhos dormindo e os de meia-idade como eu bufando sem parar. Para "animar", uma musiquinha, diálogos do filme de Marcel Carné passado no Hotel du Nord, quando estávamos parados bem em frente, comentários do guia — o mesmo que recebeu os tickets, cuidava do bar e amarrava o barco, um homem multitask. "Por que não trouxe meu Kindle, podia pelo menos ler meu livro" — era só que eu pensava.
Foi exatamente depois de duas horas que me dei conta que não era um passeio ida e volta, que a Bastille estava cada vez mais longe. Por um lado, ótimo, não teria que fazer de novo abre eclusa, fecha eclusa. Em compensação, cada vez mais me distanciava da minha casa. Acabamos em La Villete, o barco deu uma paradinha, não a final, mas a primeira em toda a trajetória, e eu desci correndo antes que eles me impedissem. Por sorte, a dois quilômetros, na saída do parque, havia uma estação do metrô direto para a Place Monge, a minha estação. Eu me joguei dentro dele, consegui um lugar e nunca foi tão feliz, após 20 estações, me ver dentro de casa. Exausta.
Nove horas da noite estava dormindo e para compensar o mau humor tive um sonho espetacular. No barco? Você enlouqueceu? Dançando em um salão, "That's Life", com Sinatra. Meu parceiro? George Clooney.
Isso que é bom: pé na terra, cabeça no ar e nada de água.