Turistas, o Poder e as Cocottes

8 0 0
                                    

Aqui em Paris, os turistas compram desenfreadamente

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Aqui em Paris, os turistas compram desenfreadamente. Os franceses olham com certo desdém para as imensas sacolas que todos carregam.

Não quero ser arrogante, nem menos daquele tipo que passa 100 dias em Paris e começa a falar Porrrr Favorrrr fazendo bico e fingindo que desaprendeu um pouco a língua mãe. Isto posto, posso ser um pouco presunçosa. Num dos raros dias de sol, resolvi que era hora de ir ao Champs Elysées. Afinal, não ir lá é como não ir ao Pelourinho quando se está em Salvador, mal comparando.

Multidões se acotovelavam, era hora do almoço e tudo era caro e cilada; ao cinema não dava para ir, pois a próxima sessão seria daqui a duas horas; não encontrei o ponto do ônibus; atravessei a rua que não precisava e, já sem saco, peguei um táxi e fui para o Boulevard Haussmam. Tolinha. Ali se encontra a fortaleza inexpugnável dos turistas brasileiros, japoneses, coreanos: as Galerias Lafayette. No meio daquele formigueiro humano, esbarrando nas sacolas, ouvindo todas as línguas do mundo, exceto francês, percebi que mais uma vez estava no lugar errado. Voltei para casa correndo e refletindo que turismo é fundamental, mas é uma praga para nós, les résidents. Ai que besta! Se achando. Se fosse parisiense jamais faria este trajeto, a menos que fosse obrigada.

Resolvi dar outra chance ao Champs Elysées, mesmo depois de ter jurado que não colocava mais os meus pés lá. O motivo era muito especial: conferir alguns fatos históricos que muito me interessaram em Paris: as cocottes, ou seja, as grandes cortesãs que dominaram Paris no século XIX. Esther Lachmann, por exemplo, de origem polonesa, filha de um modesto alfaiate refugiado na Rússia, foi para Paris ganhar a vida do jeito que sabia, vendendo o corpo. Um dia, foi jogada de um carro na rua, em frente ao número 25 da Avenue Champs- Elysées, e jurou que iria construir ali um palácio para ela mesma. Rapidamente ela subiu na vida, após se casar com um marquês português e se tornar Marquise de Païva. Era pouco, subiu na escala da nobreza ao se casar com um conde prussiano. Cada vez mais rica, decidiu que iria ter a mansão mais bela de Paris, o que foi feito pelo arquiteto Pierre Manguin, L'Hôtel de la Païva.

 Cada vez mais rica, decidiu que iria ter a mansão mais bela de Paris, o que foi feito pelo arquiteto Pierre Manguin, L'Hôtel de la Païva

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Até hoje o número 25 da Avenue é um marco da arquitetura do Segundo Império. Fui lá ver, claro. Realmente é extremamente bela a casa, que vi somente com as portas entreabertas. Curiosamente, ou não, hoje é um clube para homens, e só é permitida a visita aos finais de semana (quando os negócios diminuem), para grupos e com guia especializado. O curioso é que ao lado, no número 23, está uma das atrações atuais de Paris: a loja americana Abercrombie & Fitch, cuja entrada fica na verdade atrás da rua, passando por um caminho ajardinado, como se fosse um labirinto. O décor é o mesmo da fachada da casa da cocote, muito dourado. Muitos corpos nus emolduram o painel logo depois da gigantesca porta, música alta, jovens sem camisa dançando — bem mais parece uma festa gay do que uma loja para adolescentes. É proibido fotografar, mas é curioso dar uma olhada. Não é a casa da cocotte, mas... Se quiser se aventurar vá bem cedo, porque há uma fila enorme na porta. Da casa da cocotte? Claro que não, da Abercrombie.

Seguindo a minha busca pelas cocottes, fui até a casa da cortesã italiana Guilia Bénini, La Barucci, no número 120 da mesma avenida. Giulia nasceu na Toscana em 1837, era uma mulher alta, magra, de olhos negros e um francês com forte acento italiano, que causava frisson entre os cavalheiros. O maior sucesso era seu apartamento, "cujo luxo se faz anunciar desde a portaria" — mencionou um jornal da época. A letra N estava presente em muitos elementos de decoração e do mobiliário, uma clara menção a Napoleão III. Lá não se vê mais uma fachada esplendorosa, mas a entrada de um conjunto de escritórios e lojas. Pena que hoje não possamos ver nem da calçada os vestígios desta pompa, mas uma passada por lá faz a imaginação voar.

Entre uma cocotte e outra, encontrei uma placa especial no número 114. Um desenho de um homem de bigode e um chapéu e os dizeres:

ALBERTO SANTOS DUMONT (1873-1932)

Brésilien — Inventeur — Constructeur- Pilote

PIONNIER DE L' AERONAUTIQUE

Habita cet immeuble devant lequel em 1903 a fit aterriser son dirigeable 9.

Saí de lá contente, quase ufanista, e imaginando como teria sido aquela avenida no passado, com cocottes, nobres, um dirigível pousado, enfim, um lugar onde o fausto não significava lojas de grife, nem turistas enlouquecidos com a boutique do Paris Saint Germain, mas o poder da imaginação, o poder das ligações perigosas e o poder do poder.

100 Dias Em ParisOnde histórias criam vida. Descubra agora