Aqui em Paris, é fácil viajar para qualquer outro lugar.
A França tem uma estranha divisão, pelo menos para mim, uma brasileirinha da gema: são 27 regiões e 100 departamentos, se não falha a minha última fonte de informação, a Wikipédia. Eu precisava de uma resposta, após fazer várias perguntas em um fim de semana, antes classificado como "na Provence". Fui para Pont Saint Esprit, situada no lado direito do Rio Rhône, um dos mais importantes da França, que é localizada em um ponto estratégico, pois está na fronteira de três regiões — Rhône-Alpes, Languedoc-Roussillon e Provence- Alpes-Côte D'Azur — e também estrategicamente colocada no cruzamento entre três departamentos: Gard, Ardèche e Vaucluse. Minha amiga AF, a quem fui visitar, não facilitou: "Eu sou parisiense, então o Sul da França é tudo Provence". E explicou ainda que provençal é um estilo de vida e uma arquitetura que podem ser encontrados em todas as regiões por ali. Então, estive na Provence e não se fala mais nisso.
Na véspera de viajar, fui prudente, perguntei como estava o tempo: "Ótimo, calor, 30 graus, Provence!". Fiz uma mala carioca, quase coloquei um biquíni. No dia seguinte, fui avisada que estava chovendo e a temperatura tinha baixado um pouco. Peguei uma capa e uma echarpe. E quase morri ao descer do trem em Avignon. Chovia fino, a temperatura era 10 graus, com sensação térmica de -10. O guarda-chuva que comprei durou somente a travessia da rua, pois o vento mistral conseguiu destruí-lo. Muitos escritores já falaram do mistral, um vento frio e seco, que gela as narinas e a alma. E há até o provérbio popular: "Avenie ventosa, sine vento venenosa, cum vento fastidiosa", algo como "ventosa avenida, sem vento amaldiçoada, com vento entediante". Mesmo assim me aventurei por Avignon, linda cidade murada, onde viveram os papas por muitos anos e depois voltaram correndo para a quente Roma. Você já foi literalmente carregada pelo vento? Eu já, em Avignon. Adoraria voltar um dia com sol e aproveitar, mas não foi dessa vez. Mistral, me aguarde. Agora que te conheço sei como lidar com sua força e não serei quase derrubada por você.
Quarenta minutos de estrada — a região é totalmente cortada por autopistas e estradinhas vicinais — chegamos a Pont Saint Esprit, ou melhor, à propriedade dos Fabrol, com seus vinhedos, plantação de kiwis, peras, entre outras cositas, que fica a um quilômetro da cidade. O frio persistia e uma volta na cidade me proporcionou algumas surpresas, como o Museu de Arte Sacra. É impressionante, e só acontece nos velhos países da Europa, em especial, na França: em uma pequena cidade, o Estado resolveu comprar uma casa medieval e transformála em um museu com um acervo pequeno, mas espetacular. E sem preconceitos. Arte sacra é tudo — dos sarcófagos do Egito a ícones russos, passando pela tradição da igreja católica. E uma curiosidade: como a casa havia abrigado um hospital, há a antiga farmácia, a banheira de cobre onde os epiléticos recebiam banhos frios, entre outras coisas. Adorei. Preço? De graça.
Uma pequena virose me levou para a cama no primeiro dia chuvoso e no segundo, onde também o tal sol provençal devia ter ido passear em sua capital Marselha — ah, as regiões têm capitais, mais uma informação geográfica a processar. No terceiro dia, porém, a chuva resolveu dar uma trégua à pobre brasileira, assim como a virose, e pude conhecer as maravilhas do lugar. Bastava andar um pouquinho para um lado para estar em outra região, departamento, ou seja lá o que for, mas sempre um local banhado por rios que acabam se encontrando no Rhône. E cidades minúsculas com nomes maiores do que elas muitas vezes: La Roque sur Cèize (uma cidade em uma rocha em cima do rio, o nome explica), Goudargues (com pequenos canais e por isso chamada de Veneza), La Chartreuse de Valbonne (que não é propriamente uma cidade, mas um ponto histórico onde havia um claustro de freiras que faziam vinho) e a campeã, a que mais amei: Aiguèse, classificada como uma das mais belas cidades da França. Cidade medieval, com uma igreja do século XI, pequenas vielas e até a torre de um castelo, daqueles que madrastas malvadas prendiam princesas. Pensei até em subir, jogar as minhas tranças, mas como o meu cabelo é curto e completamente rebelde desde o momento em que pisei na França — cada fio vai para um lado — deixei para outra. Para alegrar mais a minha ida à Aiguèse, havia uma feira com doces, queijos, balas, vinhos, uma delícia. A carteira estava no carro, no estacionamento. Que ódio! Para finalizar a manhã, AF, a melhor guia informal da região, que, em breve, vai tirar a sua licença profissional e, desde já recomendo, me levou para ver Gorges de l'Ardèche. Uma panorâmica rápida do cânion natural, onde os mais ousados — não eu — descem de caiaque. Lindo, mas prefiro vê-lo de cima ou em fotos.
Hora do almoço e isso aqui é rígido em terras provençais, um ritual fundamental e curtido em detalhes: aperitivo, uma torradinha com tapenade de azeitonas ou brandade de bacalhau — uma especialidade de Nîmes, a capital de Gard (ah, os departamentos também têm capitais, cada vez fica mais complicado) com vinho rosé; salada, a seguir o prato principal, com vinho tinto: frango criado na própria terra — quando as raposas deixam — com aspargos comprados no plantador ao lado e colhidos na hora e um bom purê de batatas também colhidas para o almoço. E o queijo. E a sobremesa. E um bom papo. Confesso me sentir uma privilegiada por ter compartilhado desta refeição provençal com SF (a nossa "chef"), seus pais YF e JF, e minha queria amiga AF. Se não tivesse visitado coisas tão bacanas, teria valido a pena ter ido só para este almoço em família. JF, muito orgulhosa e catita, afirmou que estávamos ali no melhor dos mundos " quarenta minutos tanto do mar quanto da montanha". E a felicidade de todos parecia confirmar isso.
Antes desta pequena viagem havia visto em um programa de televisão, Masterchef (adoro, competição de chefs franceses amadores), um lugar esplendoroso onde havia sido feita a gravação. Não entendi bem o nome, mas me impressionou porque era algo como uma ponte deslumbrante. Pois bem, fica a quarenta minutos de Pont Saint Esprit (JF tem razão): Le Pont du Gard, aqueduto construído pelo romanos no século I, com 50 metros de altura em três andares (o mais alto do mundo), que continua lá, imponente, majestoso, prova do poder de Roma. Fiquei alucinada pelo local e se um dia voltar lá, vai ser com gel no cabelo, porque o vento inclemente mais uma vez me deixou com os cabelos em pé, além da beleza do local.
Um jantar provençal, ovos com trufas negras, uma noite bem dormida, uma despedida afetuosa das amigas SF e AF e assim terminou o meu fim de semana provençal, que compartilho neste livro com você, torcendo para que possa um dia sentir tudo isso.