Traição, Tesoura e Corte

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Aqui em Paris, o cliente nunca tem razão

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Aqui em Paris, o cliente nunca tem razão.

Você já traiu o homem da sua vida? Eu já. Duas vezes. Na primeira, ele estava viajando. Na segunda era eu quem estava em Paris, ou seja, a traição se tornou inevitável. Nós nos conhecemos, quando éramos muito jovens. Eu tinha os cabelos na cintura, lisos. Ele, tão encaracolados que desafiavam o vento. Éramos jovens, alegres e confiantes no futuro. Nós envelhecemos, meus cabelos foram encurtando e embranquecendo; os dele, caindo mais do que ele gostaria, mas continuamos crédulos que o que virá será sempre melhor. Desde o dia que nos vimos não nos separamos mais. Uma vez por mês, encontro marcado. Ele viu minha filha nascer, crescer e virar uma adulta, a quem mima até hoje. Mesmo assim precisei traí-lo. E ele aceitou, coisas da vida, talvez seguro de que jamais nossos encontros iriam parar. Ele é casado com uma mulher simpática e com ela tem duas filhas, que vi crianças em fotografia e que também já são adultas. Na cintura ele tem as suas tesouras cortantes permanentemente e é um mago no corte: LM. Você quase caiu para trás por causa deste introito, não é mesmo? Mas que homem é mais importante na vida de uma mulher do que o seu cabeleireiro (perdão, hair stylist). Mulher, quando está carente, corta o cabelo. Quando está triste, muda a cor do cabelo. Quando se aborrece, picota tudo. Quando casa, faz cabelo de princesa. Quando separa, quer voltar a ser princesa. E quem está do lado dela, sempre? O homem da sua vida.

Ele sabia que eu não ia resistir 100 dias sem cortar o cabelo. Dito e feito. Morta de medo, tomei a decisão de mudar um pouco o visual, porque já estava com um topete maior do que o do falecido Itamar Franco. Já havia olhado com o rabo de olho dois salões muito próximos: um na Rue du Four e outro uma esquina adiante, na Rue du Sabot. Minha amiga VS, quando esteve em Paris, deu força para que cortasse no mais tchan, com uma entrada parecida de um clube privé. Intimidada, como uma boa brasileirinha sabe ser diante da grandeza de Paris, em especial dos seus cabeleireiros, fui no outro, menor, onde poderia cortar com um iniciante, um designer, um diretor de criação, de acordo com o que quisesse pagar — estava escrito na tabela pregada na porta. Cheguei, fui atendida prontamente, me fizeram sentar diante do espelho e dois cabeleireiros passaram meia hora me convencendo a deixar o cabelo crescer.

 "Mas eu gosto bem curtinho" — balbuciei. 

"Não fica moderno" — responderam taxativamente. E continuamos um tempo nesta embolada.

— Eu quero curto.

— Não fica bem.

— Eu quero curto.

— Mas você é moderninha, olha os seus óculos.

— Eu quero curto.

— Não vai dar.

— Eu quero curto.

— Tenta outro design.

— Eu quero curto.

— Não, não e não.

Não houve jeito, eu insisti o mais que pude até eles guardaram as tesouras ostensivamente, só para me irritar. Já ouviu falar nisso? Só em Paris o cliente não tem razão. Existem 70 mil salões na França; 12,1 cabeleireiros por mil habitantes na França (e um médico para cada 5 mil habitantes); 162 mil pessoas trabalham no setor — e estas estatísticas são reais, afinal 100 dias em Paris, como já disse, é cultura. Pois bem, eu entrei no único salão que se recusa a cortar o cabelo de uma cliente. Só pode ser pessoal. IP, porém, tirou o meu complexo, quando comentei dias depois o ocorrido: "O problema é que os franceses se sentem na obrigação de dizer o que pensam e por isso o dono do restaurante, o coiffeur, podem mandar o cliente embora sem remorso. Na França o cliente não é o rei". Se ela que é francesa assim define, quem sou eu para contestar?

Saí andando pela rua e fui para o outro, o tal com entrada de boate gay: O Coiff1rst (44 Rue du Four 75006). Rudy, um dos coiffeurs, veio me atender e resolvi não perguntar em que categoria ele se encontrava, pois ali também havia a hierarquia dos que cortam os cabelos, como mais uma vez a placa indicava. Gentilmente, ele disse que eu precisava cortar na lateral e atrás (o que eu havia pensado) e deixar comprido na frente como LM havia feito no Brasil, só com alguns retoques que o tempo exigia. Enfim, consegui cortar o cabelo. É muito estranho, porque a tesoura dele jamais estava na horizontal, sempre na vertical, de cima para baixo, de baixo para cima e chega de detalhes senão os homens vão se enforcar de tédio. Gostei do resultado e prometi voltar. Mais uma vez, combinado, LM? E não se fala mais nisso. Mais do que duas traídas já vira amante permanente.

Sabe o que achei mais legal? Ver o retrato dos serviços na França. Se em um restaurante há um garçom para dezenas de meses, no salão o coiffeur faz tudo: guarda o seu casaco, traz o quimono que deve ser colocado por cima, lava a sua cabeça (e faz uma massagem de relaxar o cérebro), ensina como se deve secar o novo cabelo, aproveita e lhe vende um produto para finalização (com classe), fecha a conta, recebe o dinheiro, dá um cartão com seu nome, pega o seu casaco, ajuda a vesti-lo e vai até a porta. Quando contei para minha amiga LP, com seu humor carioca-baiano ela arrematou: "Bem que ele podia ter feito uma faxina na sua casa". É mesmo, não pensei sobre isso. Da próxima vez, ele não escapa.

Quando custou? 119 euros. Quem mandou escolher um coiffeur no topo da cadeia alimentar? Acho que R corta o cabelo do Hollande, só pode ser. Cai o pano.

100 Dias Em ParisOnde histórias criam vida. Descubra agora