Comer, Comer e Comer

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Aqui em Paris, gula não é pecado nem venial

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Aqui em Paris, gula não é pecado nem venial. Aliás, é uma qualidade indispensável que leva ao paraíso.

Dizem que os parisienses também rezam e amam muito, mas o que sei é que comer é uma obsessão em Paris. Os parisienses só pensam nisso e andam pela rua observando os cardápios na porta dos restaurantes, lendo, decifrando os ingredientes e saboreando de antemão o que um dia vão comer. Os turistas entram na onda e em poucos dias já conhecem o que os parisienses sequer sonham — ou pelo menos assim acreditam. Uma das coisas que mais me irrita na face da terra é aquela pessoa pretensiosa que, assim que você chega de Paris, pergunta: "Mas você não foi naquele restaurante no 678 ème, na Rue Saint Martin des Andes et Navarre, aquele que serve perna de rã gratinada com salmão pescado pelo próprio chef na Escandinávia e que só vai francês?" Você, já humilhada, responde: "Não, não fui". Aí vem o tiro de misericórdia: "Então você não foi a Paris". Luiz Fernando Verissimo já escreveu sobre isso com muito mais talento do que eu e devia ter guardado para copiar aqui, já que passei várias vezes por situações como essa. E decidi desde então que não finjo que sei tudo, que conheço todos os chefs e que adoro um restaurante estrelado. Há quem viaje para achar, eu viajo para me perder. E entro em qualquer lugar, às vezes é ótimo. Às vezes, sofrível. Assim como a vida. 

Logo na primeira semana fui a um tal restaurante que só tinha francês. E logo onde, no Carroussel du Louvre. Só rindo. O Marriage Frères, uma loja de chá que adoro, abriu um salão de chá e almoço, ao lado da entrada do Louvre (dentro da Pirâmide, não na rua). Os garçons têm topetes da mesma altura da antipatia, e no dia que fui lá havia nas poucas mesas casais simpáticos franceses, que conversavam sem parar (eles falam muito, o que é ótimo). Resolvi pedir um frango que vinha com uma explicação imensa, mas não passava de um frango com legumes feito na wok. Gostosinho, mas, como diz minha amiga MIF, nada para contar para a mãe. Não valeu os 25 euros. Saí morrendo de fome e, para acabar a festa, entraram alguns japoneses. Não me virei com medo do topete dos garçons terem desabado.

Mas se esta foi uma das experiências que só deixam um rastro de irritação, tive boas surpresas, como comer suflê no La Cigalle Recamier (4 Rue Récamier 75007), o restaurante predileto do presidente Hollande. Você já comeu nuvem? Não? Então precisa ir lá. A consistência é algo indescritível, especialmente para quem mora no Brasil e come suflê em casa, uma gororoba com farinha de trigo e claras de ovo, que jamais cresce — mesmo assim, é bom. Soufflé no La Cigalle é outra entidade e ganha até dois ff. Lá se pode optar pelo soufflé grande (+ ou – 20 euros) ou pelo pequeno (em média, 10 euros). Resolvi comer dois dos pequenos — o de queijo e o de salmão. Minha amiguinha, PV, que estava indo embora de Paris e me levou no paraíso, escolheu o de pato e o de cogumelos com toque de farinha integral. Amamos todos e comeríamos mais uns, digamos assim, 20. O garçom bem que avisou: "se vocês quiserem soufflé de sobremesa têm que pedir agora, junto com o salgado". Fizemos corpo mole, engrenamos em uma conversa comprida, tomamos uns goles de rosé (já estava me sentindo quase uma bêbada inveterada) e ficamos loucas pela tal sobremesa: eu queria o de caramelo com sal de Guèrande e ela o de frutas do bosque. Tentamos e não fomos bem-sucedidas. E antes que pensássemos ser pura má vontade, quem estava nos atendendo explicou: "às 14h30 o forno é desligado, os cozinheiros precisam comer, n'est pas?". E arrematou, como um bom francês: "eu avisei". Tivemos que nos conformar com creme brulê com baunilha. Chato, essas coisas magoam.

Fui apresentada à Rue des Abbesses pela minha amiga DB, que aceitou convite de um grande amigo, JLB, que mora há muitos anos em Paris e garante que Montmartre é o melhor lugar de Paris e, quiçá, do mundo. Com os dois e mais a adorável família de JLB comemos ostras com vinho branco no badaladíssimo La Mascotte (52 Rue des Abbesses 75018), fundado no século 19 e que conserva o charme dos antigos restaurantes franceses. Voltei lá mais duas vezes e posso dizer que entrou na minha lista dos 10 mais. Lá comi o melhor prato de todos os tempos: costela de porco, travès de porc, carne tenra, curtida por muitas horas, de sabor marcante, porém delicado e perfumado com um ligeiro, mas bem ligeiro mesmo, curry. Os garçons vibraram quando disse que havia sido o melhor que havia comido em Paris e mostraram orgulho do time. E merecem ter mesmo.

Outra experiência gostosa em todos os sentidos foi almoçar e jantar na Brasserie Balzar (49 Rue des Ecoles 75005), outra indicação da minha amiga gourmet DB

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Outra experiência gostosa em todos os sentidos foi almoçar e jantar na Brasserie Balzar (49 Rue des Ecoles 75005), outra indicação da minha amiga gourmet DB. Fica ao lado da Sorbonne, foi inaugurada em 1886, e é ainda ponto de encontro de intelectuais e refúgio perfeito para turistas que estão buscando comida francesa. Os mâitres e garçons são muito atenciosos, alegres e prontos a sugerir o melhor do dia. E não usam topete. O cardápio é apetitoso e eu recomendo a experiência de comer aile de raie française façon grenobloisepommes vapeur, a nossa conhecida arraia com muita manteiga e alcaparras acompanhada com batatas cozidas. É deliciosa. Dizem que é o prato predileto do Johnny Depp, que lá não estava. Olhei bem para os lados em busca de outro: um senhor magrinho, de óculos em um canto, mas também não o vi. Se você for ao Balzar cheque também: pode ser Sartre que veio reviver os velhos tempos.

Mas o melhor, o campeão, no quesito gastronomia deixo mesmo para o final. Odeio clichês. Mas não posso deixar de usar um: "Quem tem amigos, tem tudo". Meus amigos recentes, o elegante JL (especialmente quando coloca uma echarpe de cashmere cinza) e sua encantadora mulher LL me convidaram para jantar no L'Atelier Saint-German, de Joël Robuchon (5 Rue de Montalembert 75007) — uma experiência inesquecível. Digamos que nem é um jantar, é uma efeméride.

O local é descontraído, um enorme balcão que circunda uma cozinha, e onde se sentam 40 pessoas, normalmente para a experiência de comer o "Menu Découverte" — seis pratos e duas sobremesas criadas pelo Chef do Século, título que Robuchon ganhou no final dos anos 90 e que acumula três centenas de estrelas no Guide Michelin em seus diversos restaurantes pelo mundo. Para mim, só o L'Atelier merecia as 30, embora tenha duas, o que é um luxo. O serviço é impecável e acompanhar o verdadeiro balé (JL achou mais parecido com uma sala de cirurgia, tamanha precisão) dos artesãos (não dá para chamar de cozinheiros simplesmente) sob a batuta do chef Axel Manes, discípulo de Robuchon, é uma delícia. A cada pedido todos respondem ordeiramente: OUI, CHEF. É absolutamente genial, me senti no meio de todos os realities sobre gastronomia que vi, vejo e verei. Os garçons são sorridentes, educados, polidos, brincalhões, uma raridade em Paris.

As porções são pequenas, mas, evidentemente, pensadas para que o prazer permaneça ao longo das duas horas e meia de degustação, que começa com caranguejo, passa pelo caviar, o foie gras, ovos, aspargos verdes e saint pierre até chegar ao prato principal — também em pequena porção de cordeiro ou codorna. De sobremesas (o plural é fundamental) creme de maracujá e banana e ganache de chocolate. Tudo isso escrito parece banal, mas cada prato contém nele os elementos da genialidade do chef, a mistura perfeita de texturas — suavidade e crocância — e sabores — picante, ácido, amargo e doce. Não saberia escolher o mais saboroso porque é a sucessão que faz tudo ter sentido. E como não sou crítica gastronômica, nem pretendo fazer um guia sobre o assunto, encerro aqui.

O que posso dizer é que meus amigos me proporcionaram uma noite em que os sabores e a boa conversa se integraram perfeitamente. É caro? Claro que é! O elegante JL nem deixou que eu visse a conta, mas bisbilhoteira sei que o menu é cerca de 140 euros por pessoa. Eu até podia pagar, e o gerente da minha conta no banco iria pensar: "Ela enlouqueceu de vez em Paris". Mas se você tem bala na agulha ou amigos generosos como os meus, que fizeram da comemoração de uma meta realizada por nós três, uma experiência única para mim, não hesitem.

Certamente, L'Atelier é uma das boas coisas que Paris tem a oferecer. Cheio de franceses e de turistas — como acontece por toda a cidade.

Oui, chef!

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