Aqui em Paris eles discutem sobre tudo em todos os lugares: nos restaurante, nas reuniões em casa e, especialmente, na televisão.
Até chegar em Paris todos os dias eu acordava, tomava café da manhã e lia o jornal, sentada em uma confortável poltrona, que parecia estar ali só para isso. Lia mais ou menos, porque os jornais foram ficando cada vez menos inspiradores, requentados, com análises para lá de pífias e manchetes idem. Velhos hábitos, porém, não se mudam. Afinal de contas, pensava, jornalista tem que ler jornal, mínimo que ele pode fazer para se manter informado. Quando decidi partir, mudei a minha assinatura para a casa da minha filha e mantive uma virtual, crente que todos os dias iria ler as colunas que detesto, os editoriais que odeio e de dez em dez dias, uma reportagem que me interessasse. Não abri nenhuma vez a edição digital. No máximo dei uma olhada na primeira página do on-line e desliguei rapidamente. Quando me detive mais um pouco um dia no noticiário do Rio deu no que deu: acordei de madrugada com um pesadelo horrível, que minha casa havia sido assaltada e minha empregada sequestrada, e que só seria libertada se eu liberasse meu cartão de crédito com a senha. E no final aparecia o Bope cantando aos berros:
Tropa de Elite
Osso duro de roer
Mata um, mata dois
Também vai matar você.
Ainda bem que acordei em Paris. Mesmo assim meu coração bateu acelerado, os casacos pendurados atrás da porta quase ganharam vida, tornando-se vultos um pouco temerários. Levantei, conferi que estava tudo fechado — além da fechadura, cuja chave parece uma piranha com tanto dente que tem, ainda existem duas trancas. Eu moro no quinto andar e para chegar nele era preciso passar por um código que abria a porta principal e outra porta. Ou seja, quase inexpugnável. Minha amiga GP até explicou: "Eles morrem de medo dos alemães chegarem". Procede. Só pode ser isso. Mesmo assim baixou uma insegurança carioca. Achei que melhor seria supervisionar as janelas — todas fechadas. Além disso, no parapeito das janelas há um monte de pequenas hastes pontudas de metal, o que impede que se caminhe nele. Para afastar gente, pensei eu, quando cheguei, com a paranoia habitual. "Para pombos, sua louca" — me explicou minha amiga VS. Ainda bem que tenho amigas sensatas.
Acordei e não li o jornal nunca mais. É fácil se manter informado em Paris, porque existem trilhões de jornais na televisão e incontáveis debates sobre tudo. Fiz questão de ligar a televisão todos os dias, pelo menos duas horas, enquanto cumpria os afazeres domésticos ou estava no computador, para conviver mais com a língua. Cheguei à França no auge da crise Cahuzac, o Ministro das Finanças de Hollande, que foi descoberto com a boca na botija — ou seja, ele que deveria fiscalizar a evasão da moeda, tinha uma conta na Suíça. Ele, constrangido, diferente do estilo que conhecemos ("não tenho, nunca tive") era mais sincero, não mentia tanto, mas garantia que eram somente 100 mil euros evadidos, mas todos afirmavam que o tipo de conta que ele tinha precisava ter pelo menos 2 milhões de euros. Durante dias, eu abria a televisão e só dava o Cahuzac. Demorei um pouco a entender o imbróglio, primeiro por causa da língua e porque os debates eram tão acalorados que não havia espaço para alguém fazer uma suíte — jargão jornalístico que designa um resumo dos fatos. Era joga pedra na Geni direto. Um dia, porém, assisti a uma entrevista do próprio, com a maior cara de pau, e feliz fiquei ao ver que jornalista francês não tem medo de fazer pergunta e nem puxa o saco do entrevistado. Além disso, após o jornal e o debate há ainda um humorista parodiando todos os políticos, inclusive o presidente. E, só para concluir, Cahuzac sifu.
Quando abandonei a leitura dos jornais descobri que velhos hábitos são para ser mudados, quando isto é necessário. Espero continuar assim. Pode ser que seja que nem criança depois da colônia de férias: volta disciplinada, arruma a cama todo o dia (o que não faço no Rio, em Paris e nem em Hong Kong) e depois de uma semana já bagunça tudo de novo. Espero continuar a pensar que serei capaz ad infinitum de criar novos modos, o que é extremamente difícil para uma taurina que odeia mudanças. Ou será que odiava? De vez em quando até mudei trajetos familiares. Um dia, segui a luz que iluminava o Pantheon, como encantada pelo flautista de Hamelin, e peguei um caminho que pensava ser desconhecido. Não era, refiz um trajeto de 1975, quando estive na cidade pela primeira vez. Foi emocionante rever a pedras do caminho, mas foi interessante também chegar em casa por outro lado, até então desconhecido. Baby steps, mas que significaram muito para mim. Só não muda quem morreu. E eu espero continuar atrás do trio elétrico por muito tempo.
E você?