Aqui no Rio, vou sentir falta de tudo isso.
Eu queria fazer uma crônica bem humorada de despedida, mas olho os vestígios da partida pela casa e meu coração se abotoa (olha eu citando e revertendo o brilhante Ruy Guerra em Fado tropical). Malas espalhadas pela sala, somente um ovo, duas fatias de pão de forma, um restinho de manteiga, um fundinho na garrafa de leite entristecem a geladeira, outrora cheia de queijos, presunto, salmão e outras gostosuras. É, não tem jeito, hora de partir. Finjo que ainda estou em Paris, mas o meu inconsciente me fez acordar às cinco horas da manhã. Maldita ansiedade. Estou e não estou na cidade, porque dentro de mim a partida já começou há alguns dias. Não gosto de despedidas, nem as corriqueiras, muito menos a derradeiras. E ao longo da minha vida desenvolvi um mecanismo de só ter saudades daquilo que não posso ter mais: o brilho nos cabelos e a esperança no amor eterno da minha juventude; a certeza de que minha mãe e meu pai estariam sempre presentes; o frisson de uma paixão arrebatadora. Que curioso. Paris me fez ter, nesses quatro meses, esse prazer da paixão. Nada mais me importava a não ser viver na cidade. Ou seja, é hora de desabotoar o coração. Paris estará sempre no mesmo lugar. E eu pretendo não envelhecer o suficiente para deixar de sonhar e de realizar os meus desejos. Não é adeus, é um até breve, o que me anima.
Podia cantarolar uma música para me alegrar mais ainda, e muitas passam pela minha cabeça, mas somente o exercício de me recordar de uma que combinasse com o clima do momento me fez lembrar de Tom Jobim. Uma vez, quando estive em sua casa no Jardim Botânico para uma entrevista, o maestro soberano me disse algo definitivo sobre como era viver dividido entre Nova Iorque e Rio de Janeiro: "Tudo o que é bom lá, é uma merda aqui. Tudo que é bom aqui, é uma merda lá" — uma versão mais moderna e menos graciosa, digamos assim, da Canção do Exílio de Gonçalves Dias, "as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá".
Tom, você tinha toda razão. E foi com esse pensamento que dei minha última caminhada por Paris, olhando as aves de cá, pensando nas aves de lá. O que é bom em Paris? A paisagem deslumbrante, a cultura que exala em todos os lugares, a cidadania expressa cotidianamente, manifestações na sua maior parte sem pancadaria, a elegância discreta de suas meninas, o charme narigudo de seus meninos, a veneração ao bem comer e beber, o perfeito funcionamento dos transportes públicos, as criancinhas de mãos dadas e em perfeito silêncio nos museus, a quantidade de museus, os cinemas apinhados de filmes de todas as épocas e, vamos combinar, a baguette, o croissant e o pain au raisin, que ninguém é de ferro. As aves de lá não bufam e nem são rabugentas, sabem dizer um "passa lá em casa" com toda a afabilidade, recebem turistas com simpatia e curiosidade, disseminam o princípio que o cliente tem toda razão, pelo menos na hora da compra, usam o jeitinho para o bem também. Isso sem falar no ambiente em que elas gorjeiam — Rio, um lugar de uma beleza natural tão incrível quando a maravilhosa e construída Paris. Quando voltar sei que sentirei falta de muita coisa, mas também vou gostar de ver outras, especialmente neste momento que o Brasil está passando.
Não vou me transformar naquela chata que fica contando as maravilhas de outro lugar. E reclamando sem parar do Brasil, o que meu amigo JS chama de "síndrome de Odete Roitman". Nem vou ser como aquele jogador de futebol, que passa um ano no exterior e esquece a língua. Posso não ser um Voltaire, mas dou as minhas arranhadinhas no francês e preciso poupar meus amigos de usar expressões que já estão entranhadas: OQ, em vez de OK (e nem é português?), pas de souci no lugar de não tem problema, pardon em vez de desculpe. Pode ser mais pernóstico começar a misturar as línguas?
Enfim, as palavras de Tom ecoarão dia sim e dia não para me animar. E serão muito úteis, pois o trabalho, o cotidiano , o computador me esperam. Prometo que vou ter mais humor do que nesta despedida. Afinal, esta é uma característica das aves cariocas: perder o humor, jamais. Bom humor, o que é isso? — perguntam as aves parisienses.
Na saída para o aeroporto, olho para a casa da Rue Gracieuse mais uma vez, e me despeço com outro mestre, Oswald de Andrade, que em seu poema Contrabando (que me foi enviado por uma das curtidoras do meu site a quem só posso agradecer) é o resumo do que sinto. Esta despedida pode não ser com humor, mas é nostalgicamente feliz.
Os alfandegários de Santos
Examinaram minhas malas
Minhas roupas
Mas se esqueceram de ver
Que eu trazia no coração
Uma saudade feliz
De Paris
Saudade feliz é o máximo. Esta eu não me importo de sentir.
Boa noite, Paris. Bom dia, Rio.