Capítulo 43

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Teve uma época da minha vida, não muito distante, que acreditei, mesmo tudo indo de ladeira abaixo, na balela de que dias melhores surgiriam para mim. Perdi a capacidade de enxergar e comecei a agir com emoção em determinadas situações, pois acreditava que havia fragmentos de dias melhores ali e que esses fragmentos me ajudariam a seguir em frente com minha vida.

Olhar para o meu reflexo no espelho era penoso. Sentia nojo e raiva, queria despedaçar a minha cara em vários pedaços até que eu aprendesse a lição: controlar a impulsividade e não permitir que a carícia destruísse o meu coração.

Mas... Eu já era uma adulta e ainda não tinha aprendido! Será que conseguiria? Ou era mesmo um caso sem solução, como dizia a minha mãe?

Pensamentos intrusos começaram a martelar a cabeça e a impulsividade em sua pior versão se manifestou de uma forma astuta. Em um instante, eu me contemplava no espelho e, sem perceber, logo depois já estava sentada na cama com as mãos cheias de comprimidos. Não conseguia me lembrar quando peguei as drogas de uma das gavetas do armário do banheiro.

Encarei o amontoado de comprimidos em minhas mãos e, com enorme tristeza, sorri.

Um caso sem solução.

Ele só estava brincando com sua cara.

Você não é mais minha filha.

Vadia!

Não precisamos de você mais!

Vagabunda.

Inúmeras vozes ressoando em minha mente, trouxeram à tona diversos episódios infelizes da minha vida. Deixei os comprimidos cair no chão para abraçar meu próprio corpo, e o sorriso melancólico deu lugar ao choro. Aquela punhalada que o Gregório me deu em minhas costas abriu mais um triste portal e a confirmação de que minha mãe estava certa em tudo. E em todo tempo.

Um caso perdido.

Apertei meu corpo com mais intensidade, buscando acalmar-me. Contudo, meus olhos lacrimejantes se fixaram nos comprimidos espalhados pelo chão, reacendendo uma ideia. Deveria tomá-los para o fechamento do meu ciclo de infelicidade.

Respirei fundo enquanto observava ao redor, despedindo-me do quarto que testemunhou tantas coisas. Prestes a colocar meu plano em prática, o alto som do interfone ecoou, quase estourando o som do quarto e os meus tímpanos. James elevou o volume do áudio em todo o projeto de sonorização do apartamento e não me avisou nada. Ainda era residente no apartamento e deveria ter sido notificada para evitar tais desconfortos.

Cruzei os braços e fiquei quieta, aguardando que James atendesse ao interfone e pusesse fim ao barulho. Porém, diante de tamanha insistência e falta de silêncio, percebi que James não estava no local.

Empurrei todos os comprimidos para debaixo da cama e, movida por uma vontade estranha, decidi verificar do que se tratava em vez de ignorar. Era a Salete, querendo saber de todos os passos do meu novo desapego. Permiti a sua entrada e, antes que ela chegasse, corri para passar uma maquiagem no rosto em uma tentativa de disfarçar as olheiras e a expressão de quem estava prestes a cometer um suicídio. Salete notou minha tristeza assim que entrou no apartamento e, sem fazer perguntas, me ofereceu um abraço reconfortante.

A maquiagem foi por água abaixo. Desmoronei. Com toda paciência do mundo, ela me ouviu lamentar e me abraçou de maneira tão maternal, me lembrando que alguém no mundo me amava de verdade.

Alguém me amava.

Fiquei chateada por não ter considerado o amor que Salete e sua família caótica sentiam por mim durante a minha crise impulsiva. Agradeci às criaturas celestiais por sentir a vontade de atender o interfone e deixar de lado a loucura de querer mergulhar no fim.

Descendo do SaltoOnde histórias criam vida. Descubra agora