O meu apartamento nunca está totalmente em silêncio, sabe? Não tô nem falando das crianças, porque dá pra perdê-los aqui dentro e, de mais a mais, o Oyekunle principalmente vive de fone de ouvido. Sério, aquilo já deve ter se fundido com as orelhas do moleque e virado segunda pele. E, além deles, tem esse bando de bicho. Metade se estranha com a outra metade, existem áreas demarcadas, portas que não podem ser abertas, mas alguém sempre esquece. Olha, sabe aquela história de você ir pra casa relaxar? Eu relaxo no trabalho.
Então desconfiei quando acordei e estava tudo quieto, pois significava que alguém havia se esforçado muito para que isso acontecesse, certo? Era sábado, não tinha latido, briga de gato, Kay já estava de pé, eu não tinha acordado com o Jake pulando em cima de mim querendo fazer algum programa, e o Oyekunle não perturba mesmo, nem quando larga os fones, aquele ali já nasceu adulto. Fui pra sala já sabendo o que ia encontrar, e quando chego lá não vejo um bicho, só os três gritando:
-Feliz aniversário!
Cacete! Tinha faixa na parede, um bolo colossal, uma quantidade de comida inacreditável obre a mesa, uma quantidade ainda maior de presentes espalhados em volta. Oyekunle clicou no notebook e começou a tocar "Birthday" dos Beatles.
-Parabéns pro cinquentão mais gostoso do mundo! – Kay falou antes de me dar um puta beijo, e eu ouvi os moleques dizendo "eca".
-Ok, mas você sabe que ainda assim não escapa da comemoração, né?
-Ah, eu quero ir! Mal posso esperar! – Ela respondeu imediatamente. Nossa, como a Kay é cara de pau. – Se, claro, a gente conseguir terminar a comida a tempo. E se você não ficar com o estômago muito cheio. Sabe como é, pode passar mal.
-Ou posso comer depois, exercício abre o apetite. Não é só você que tem uma surpresa hoje. Oyekunle, Jake, peguem lá o que eu preparei.
-Caaaaara – Jake saiu, prendendo o riso, para o corredor.
-O que você preparou, Vince? – Kay botou as mãos na cintura, agora desconfiada.
-Você vai ver. É uma coisa que você gosta... De maneira geral, pelo menos – Respondi, misterioso.
-É de comer? Porque se for... – Ela apontou a mesa abarrotada de comida e deixou a frase morrer.
-Você gosta mais que comer.
-De vestir? É Dolce e Gabana? É Gucci? É o quê? – Ela bateu palmas, agora animada.
Nisso, os garotos voltaram para a sala com uma caixa toda bem embrulhada, laço de fita e tal. Kay arrancou o laço e o papel em dois movimentos, levantou a tampa e tirou a camiseta.
-Não! – Ela gritou, tão chocada que deu até dó. – Me pede tudo, menos isso.
-É meu aniversário de cinquenta anos. Meio século, Kay! E só quero isso.
Entrei para o meu time de futebol logo que me mudei para Londres, com dezoito anos. É um time pequeno, pode até não ter muitas chances de um dia chegar à terceira divisão, até porque tenho cinquenta anos e ainda jogo nele, mas cara, é meu time, ajudei a desenhar aquele uniforme e sou pai dele também. Daí você faz as contas e vê que comecei a sair com a Kay quando tinha dezenove, o que significa que estou há trinta e um anos tentando convencê-la a ir a um jogo, e ela nunca foi. Hoje era a final do campeonato, exatamente no dia do meu aniversário, e ela disse que iria. Não que não fosse arrumar uma festa surpresa na sala e um absurdo de comida pra tentar me fazer mudar de ideia.
A gente não ganhava um campeonato desde 1992, só que esse ano tínhamos um técnico perfeito, o Scott, que jogava com a gente até operar o joelho. O cara sabia das coisas e, com isso, não perdíamos a cinco partidas. Chegamos ao campo animados, eu pelo menos. Kay estava com um casacão no calor pra esconder a camiseta, Jake, Oyekunle de fone no ouvido, e encontramos o Tom, Eddie, Mick, Malu e as famílias, todo mundo vestido à caráter e me desejando feliz aniversário. Fui me reunir com o time e aí o filho da puta do Scott decidiu que eu ficaria no banco.
-Como assim?! É meu aniversário, caralho! Você não pode fazer isso, a minha família está toda aí!
-Veja bem, Vince, é final do campeonato. É tudo ou nada.
-Tô em muito melhor forma que o Drake – Drake é o mais novo do time, não deve nem ter vinte anos. Tudo bem que ele é mais rápido, mas tô mesmo em melhor forma que ele.
-A gente quer te poupar, você é a nossa estrela. No segundo tempo você entra.
Me poupar o caralho. Tava era me enganando igual criança. Tomei o caminho da humilhação até o banco, e daqui a pouco escuto a Angie atrás de mim, através da grade.
-O que está acontecendo, tio Vince?
-Filhos da puta de putaria, dizendo que querem me "poupar" – Fiz aspas com os dedos.
Angie é a única que me dá moral com futebol. Quando o assunto é esse, somos tão afinados que ela podia ser minha filha. Ela sentou atrás de mim para acompanhar o jogo. Com trinta minutos, já tínhamos tomado três gols.
-Você fez todo o ritual? – Ela perguntou.
-Todo.
-Passou o dia de ontem com uma meia de cada cor pra dar sorte?
-Vermelha e azul.
-Bateu três vezes em todas as portas que passou?
-Todas.
-Escreveu com a mão esquerda? Sentou em todos os bancos e sofás do lado direito?
Outro gol. Cacete.
-Porra, Scott, vai ficar aqui me torturando até quando?! – Berrei.
-Parece que você tá precisando da sua estrela, não é não? – Angie gritou atrás de mim.
Daqui a pouco, Tom descia a arquibancada.
-Cara, isso tá tudo errado, que merda de escalação de time é essa?
-Cinco partidas invictas! – Scott berrou pra gente.
-E vai perder na mais importante, seu corno! – Tom berrou de volta.
Saldo: Tom e Angie foram expulsos e tiveram que sentar no último banco da arquibancada, vigiados pelos filhos mais velhos do Scott.
Eu entrei.
Tomamos de oito a um, mas pelo menos o único gol foi meu.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Lado Escuro da Lua - Primeira Geração
Short StoryEste é um livro de POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu (Todos à venda na Amazon e cadastrados no programa Kindle Unlimited). Ele é um complemento aos outros livros e não faz sentido se lido separadamente.