(1993) Jean-Claude: O Elefante Branco

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Renata foi embora. Vivo uma contradição constante. Odeio suas visitas, odeio quando ela parte, e isso tudo é exaustivo, pois ela vem e parte o tempo inteiro.

Renata é a tia da Malu e, apesar disso, ainda assim é bem mais jovem que eu. As duas são muito próximas e, segundo a Malu, fazem parte de uma irmandade por serem as últimas. Malu gosta de nomes imponentes e rituais, e foi assim que um fato triste como não ter família virou algo que parece saído da realeza. Como a Renata mora na Inglaterra, a uma hora de avião daqui, ela vem bastante: aniversários, natal, páscoa, ano novo. Só exigi as férias, pois é a nossa chance de viajar com o Victor e de deixar claro que a Malu tem, sim, uma família maior que a Renata. Ela tem a mim e ao nosso filho.

A primeira vez que tocamos no assunto do pai biológico do Victor foi no nosso segundo encontro, ao qual Malu chegou com ele em um carrinho, dizendo que seus amigos não podiam ficar com ele.

-O pai o visita? – Perguntei e seu rosto ficou nublado. Ela sorriu, mas era um sorriso de disfarce e eu maldisse minha boca enorme. Imaginei que ele houvesse morrido ou que tivesse sumido sem dar notícias, mas a Malu respondeu:

-Nós perdemos contato logo que fiquei grávida e ele não sabe do Victor. Foi uma época muito confusa na minha vida, Jean-Claude. Preferia não falar sobre isso.

Era um assunto enorme e precisava ser falado. Era muito sério ter um filho de alguém sem que a pessoa o soubesse. Com o passar do tempo, fui extraindo mais informações, até que aconteceu e eu fui preso irremediavelmente na teia da ilusão da Malu e resolvi comprar a ideia de que nós três éramos uma família e o pai biológico do Victor não existia. Nunca mentimos para o menino. Sempre deixamos claro que eu o havia adotado. Mas, em todo o resto, seu pai virou o que era para mim: um fantasma sem rosto, sem história, sem importância.

Menos quando Renata vem nos visitar.

Sei muito e sei muito pouco sobre a vida da Malu antes de ela vir para Paris. Sei que teve um problema sério com drogas e que o pai do Victor, de alguma forma, estava envolvido com isso. Que ela não é inglesa, é brasileira, brigou com a sua mãe e agora as duas não têm mais contato. Há um mês, recebi um bônus no trabalho e sugeri irmos ao Brasil nas férias. Malu foi categórica.

-Não!

-Você não sente saudades?

-Nenhuma.

-É de lá que você veio, Malu.

-Jean-Claude, eu nem ao menos conheço o Brasil. Eu vivi dezessete anos trancada, não há nada lá que eu tenha feito para que sinta saudades. E não conheço mais ninguém, então não, não quero – E acrescentou, depois que o descontrole passou: – Mas obrigada pela sugestão.

Malu vive de abafar muitas coisas e, honestamente, não sei o que quero que traga à tona. Vou ser sincero, eu tenho medo. Tudo na nossa situação é precário. Tenho medo do momento em que ela decida fazer as pazes com o passado, tenho medo que o pai do Victor descubra sobre ele e o leve embora. Tenho medo até que ele leve a Malu embora também, por mais improvável que isso pareça, pois vivemos bem e somos felizes. Construímos nosso lar sobre um monstro adormecido e é por isso que detesto as visitas da Renata. Ela torna o sono do monstro mais leve.

Normalmente, eu as levo para jantar no primeiro dia e todo o contato que as duas têm depois disso é durante meu horário de trabalho. No último dia, Malu faz um almoço e também convida Jackie e Luc. É uma rotina, não de todo desagradável, exceto que, quando Renata finalmente vai embora, a Malu passa pelo menos dois dias distraída e pensativa, a maior parte do tempo com seu violão, trabalhando incansavelmente na "Canção interminável" que, apesar dos anos, nunca termina.

-Como se chama? – Perguntei uma vez.

-Lily.

-Lily é a flor símbolo da França – Falei, achando graça do nome.

-Isso – Ela respondeu.

Malu fala bastante, mas não quando a Renata vai embora. Nessas horas, nos tornamos quase estranhos, pois o passado ocupa todos os centímetros do nosso apartamento e me expulsa. Não sei como agir, então me encolho em um canto e espero que ele vá embora. Uma hora isso sempre acontece, e acordo com sua voz ecoando pela casa, cantando seu rock com os fones do discman nos ouvidos enquanto prepara o café da manhã antes de acordar o Victor. É quando sei que nossa vida está voltando aos eixos.

Só não sei até quando.

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Este POV faz parte da Semana do Hiato, que acontece aqui, no grupo Realidades Paralelas da Mari e no tumblr historiasdamalu.com.br

O Lado Escuro da Lua - Primeira GeraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora