(2004) Eddie: O Convite

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Este POV pertence à série O Livro de Saint-Malo

***

Londres, julho de 2004

-Que merda – Mick disse, depois de uma eternidade.

Cara, merda nem começava a descrever. Não é que eu passasse muito tempo pensando na descrição. Ou em qualquer outra coisa. Porque, quando eu parava para pensar, a garganta fechava e o ar faltava e aquela maldita cigana voltava à minha mente, dizendo que eu era marcado pela morte. A filha da puta da morte que levava todo mundo que eu amava, mas não levava a mim.

"Um amor dos livros, desde sempre e para sempre. Eterno. E, se você permitir, ele vai te destruir."

Se eu não estava destruído, eu não sabia de mais nada.

Eu só não podia parar. Havia uma casa, Havia meus filhos. Havia, acima de tudo, a Malu, e eu não podia permitir que ela lutasse sozinha. Eu, que sempre fui um cara organizado, de repente estava ainda mais obcecado pela ordem, pelo funcionamento de tudo em seus mínimos detalhes. Assim eu não parava, eu me mantinha em constante movimento e, na medida do possível, não pensava.

-E cadê aquela nanica? - Mick perguntou, apagando o cigarro. A gente estava conversando no quintal e ele agia como se aquela fosse uma visita comum, sabe? Como se eu fosse catar a Malu pela casa e a gente fosse sentar na sala e zoar o salame dele e a flor da Alex e falar abobrinha e dar risada.

Nem sei mais o que é dar risada.

Dei de ombros. Eu sabia perfeitamente onde estava a Malu. Estava no andar de cima, talvez com o Luca, com a Lily ou com a Emily, provavelmente sozinha, certamente deprimida, esquecida que eu a amava mais que tudo e daria meus dois braços para trocar de lugar com ela, mas não podia fazer nada. Ela nunca se sentaria com a gente para falar merda, e eu só queria que o Mick percebesse isso e fosse embora para eu poder voltar para o lado dela.

-Seguinte – Ele disse, acho que cansado de todos os seus assuntos caírem no vazio, por mais bem intencionados que eles fossem. - Ela tem de lembrar.

-Lembrar o quê? - Perguntei, atônito.

-Pô, sei lá. De alguma coisa que valha a pena. Alguma coisa que faça sentido. Um ponto na vida dela em que a vida era perfeita, sabe? Ela tem de lembrar e voltar pra lá.

Voltar pra lá. Isso acendeu um sinal.

O lugar onde tudo começou. O lugar onde sempre dissemos que voltaríamos. Era tão simples que era genial. Mais. Era nossa última esperança.

Pensei em falar com ela naquela noite. Mas ela saiu do banheiro, vestindo sua camisola, arrastando seu pé dolorosamente, e veio deitar, aninhada nos meus braços, em silêncio. Eu era muito grato por ainda tê-la ali. Por ainda ter qualquer parte dela, mesmo que fosse só em corpo, não em espírito. Mas não era assim que tinha de ser feito. Se o amor salva mesmo, nós precisaríamos dele todo, completo. Nós teríamos de recriar a mágica.

No dia seguinte, fui procurar o Tom.

Cheguei ao estúdio em um dia super movimentado. Eu não ia muito lá e não sabia se aquele era o normal, mas uma recepcionista que obviamente me reconheceu disse que acharia o Tom e não demorou muito para cumprir o prometido. Ele apareceu estranhando eu ir até lá, querendo saber se estava tudo bem com a Lily. Disse que sim, mas tenho essa cara transparente para caralho e ele perguntou se tinha alguma coisa de errado com a Malu.

-Quer dizer, de mais errado – Ele se corrigiu.

-Tem um lugar pra gente conversar?

Tinha só o escritório, de onde o Tom saiu tocando o Vince.

-Ei! - Vince reclamou, se levantando. - Tá tudo bem, Eddie? Como é que a Malu está?

Eu não sabia mais como responder aquela pergunta. Era complexo e doído demais.

-Cai fora, Vince, deixa o papo pra depois – Tom interrompeu, com aquele jeito dele. Tom é um tremendo ogro, mas fiquei grato. Não estava a fim de jogar conversa fora.

Vince saiu xingando o Tom e fechando a porta atrás dele. Quando ficamos sozinhos, Tom se sentou na beirada da mesa e eu fiquei em pé mesmo, com uma energia louca, incapaz de sentar.

-O que aconteceu com ela? - Tom perguntou. - Ela teve outra crise, ela piorou, o que houve?

-Não é nada novo. É uma informação nova – Falei, tentando dar ordem aos pensamentos como eu dava a tudo na minha vida. É que sempre pensei para caramba. Era a maneira que eu encontrava de sobreviver. Mas desde que a Malu ficou doente, pensar era doloroso demais e agora eu tinha de reaprender a fazer isso, pois tudo dependia do que eu dissesse e de eu não estar enganado. - Quero dizer, eu já sei há algum tempo, desde que ela teve a crise. Mas ela só descobriu agora e está mal. Bem mal.

-Que informação é essa, caralho? Você enrola pra cacete! - Tom estourou.

-Não é fácil, porra! - Eu explodi também, o que não era a minha intenção. Eu queria a sua boa vontade, não o seu mau humor. - Ela vai morrer, cara. Uma morte horrível.

-Quando? - Tom perguntou, pálido. Tá certo, eu tinha mandado mal. A Malu ia morrer, mas ainda tínhamos algum tempo.

-É uma doença progressiva. Ela vai ficar cada vez pior, até ficar completamente inválida. Os médicos calculam que isso aconteça daqui a uns vinte e cinco anos.

Tom deu uma risadinha curta, incrédula.

-Ela vai ser super nova daqui a vinte e cinco anos. Super nova pra morrer, pelo menos.

Não falei nada. Se a Malu vivesse cem anos, pra mim não seria suficiente. Mas sim, aos sessenta ela seria jovem demais.

Tom continuava olhando o vazio, os braços cruzados.

-A Malu, inválida? Inquieta do jeito que ela é? Como ela vai ficar inválida? - Ele então abanou a cabeça, como se expulsasse um pensamento, e disse: - Vocês têm de procurar uma segunda opinião.

-Essa é a segunda opinião.

Eu entendia a negação. Compreendia perfeitamente a necessidade de procurar dez médicos esperando que ao menos um dissesse que os outros nove estavam enganados. Infelizmente, eu sabia que isso não adiantaria. E, mais, eu sabia que isso não salvaria a sua alma. Eu precisava trazer a Malu de volta.

-Nós temos de ajudar a Malu, cara – Eu disse, sem lhe dar tempo de se refazer do choque.

-Como? - Sua voz falhou e ele limpou a garganta. Tom não era como eu. Seu rosto não era uma tela e ele não chorava à toa feito um babaca. Mas havia algo se estilhaçando dentro dele.

-Nós precisamos ir a Saint-Malo, só nós três.

Ele me olhou, surpreso. Diria até com um pouco de medo, que ele disfarçou com outra daquelas risadas curtas.

-Você viaja, Eddie. Não vamos a Saint-Malo há...

-Dezoito anos – completei. - Mas ainda é a parte mais importante da nossa história. Sua história com ela, minha história com ela, e a nossa história, de nós três.

-E o que a gente vai fazer lá? Sentar na praia, como a gente fez da outra vez? Encher a cara? Falar merda?

-Ela não pode encher a cara, mas acho que sentar na praia e falar merda é um começo - Respondi. Tom abanou a cabeça, incrédulo, e resolvi apelar. Eu era um cara desesperado. E tinha certeza que Tom toparia se entendesse as minhas razões: - Foi lá que a gente se apaixonou por ela. A nossa mágica é essa. Tudo que aconteceu nas nossas vidas depois foi em função disso. A gente precisa lembrá-la que ainda a ama.

-Ei, eu... - Olhei para o Tom e ele capitulou. - É isso, então? Você acha que sentar na praia, falar merda e amar a Malu vai ajudá-la.

-Se não ajudar, eu não sei mais o que fazer – Falei, tentando não soar derrotado. - Nós três juntos temos alguma coisa especial. Tenho fé nisso.

-Você não tem fé em nada, ateu de merda.

-Tenho na gente.

E tinha. Era só o que me restava. 

O Lado Escuro da Lua - Primeira GeraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora