(1986) Eddie: Não havia como um garoto pobre como eu não ficar hipnotizado

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A gente tinha acabado de tocar no Revenge, show lotado. Não era por nossa causa. Não vou dizer que nosso show não tenha sido do caralho, mas na realidade havíamos nos dado bem porque os Nighthawks tocariam depois de nós, e foram eles que trouxeram pelo menos oitenta por cento do público. Sem problema, mais gente para conhecer o nosso trabalho. Quando terminamos, fomos guardar os instrumentos na van e percebemos que Vince tinha sumido. Tudo bem que ele não tinha nada para guardar, mas normalmente ele dava uma ajuda, não desaparecia e deixava que ficássemos com toda a parte pesada. Quem explicou foi o Mick:

-A Singe trouxe umas amigas.

-Bonitas? – Tom perguntou.

-Bem bonitas – Mick respondeu. – Duas são brasileiras, o Vince ficou de olho em uma delas.

-Brasileiras?! – Eu e Tom dissemos juntos.

Nós dois começamos imediatamente a pensar em corpos bronzeados, biquínis minúsculos, danças sensuais e muito sexo. Nunca fui fã de um estereótipo, aliás sempre fugi deles, e por saber por experiência própria que eles são incrivelmente injustos, mas foi irresistível. Olhei pro Tom e sabia exatamente o que estava passando pela sua cabeça: Que ele tinha que pegar a outra brasileira antes de mim. Isso a gente veria, porque aquela corrida eu queria disputar.

Quando voltamos, localizamos o Vince, a Singe e uma mulher bonita pra caramba. Ela tinha o rosto tão exótico que podia vir de qualquer país, podia vir até de Saturno, e eu acreditaria. Não era magra nem gorda, mas tinha tudo no lugar certo e, principalmente, muito peito e muita bunda. Já dava pra imaginar que o Vince havia pegado a mais gostosa. Não era possível que a outra tivesse mais curvas ou volúpia que aquela. Tom ficou meio hipnotizado por ela, e eu perguntei à Singe onde estavam as suas amigas (achei que perguntar pelas outras amigas me colocaria em uma categoria bem cafajeste, como se elas estivessem em um mostruário, o que era mais ou menos como eu e Tom as imaginamos para podermos escolher). Mas Singe apontou para o palco e falou:

-Já vai começar!

Ficamos para assistir aos Nighthawks, então. Não que eu estivesse interessado. Tom, muito menos, deu umas rodadas pelo bar, caçando a outra brasileira ou não. Tom estava saindo com a Anna na época e ela não pôde ir naquela noite, mas isso nunca foi empecilho para que ele pegasse quem tivesse vontade. Eu, não, aguentei firme. Achei, de uma forma infantil e babaca, que seria recompensado pela minha espera.

Finalmente, o show terminou e Singe falou para a gente ir "encontrar as meninas". Enquanto abríamos caminho até o bar, ela explicou que eram suas colegas da escola, uma tocava baixo, a outra, brasileira, era uma guitarrista extraordinária, que ela falava pouco, mas era muito gente boa.

Tá, tá, então vamos lá.

Havia duas garotas conversando a uma mesa e Singe parou em frente a elas para fazer as apresentações:

-Essa é a Gigi. Essa é a Malu, a brasileira que eu falei.

Malu ergueu os olhos castanhos em um rosto tão perfeito e com maçãs bem marcadas que parecia de brinquedo. Imediatamente, seu olhar vacilou e ela nos cumprimentou sem realmente ver ninguém, uma boca de lábios cheios se abrindo em um meio sorriso um pouco simpático, muito envergonhado. Ela não tinha a abundância de curvas da amiga, tudo nela era compacto e econômico. E lindo. Absolutamente lindo.

-Vamos comer alguma coisa? – Alguém perguntou. Todos concordaram. Menos a Malu, que estava muda. Menos eu, que estava tão mudo quanto ela. E olha que eu falo pra caralho.

Fomos para a rua e, quando dei por mim, Vince, Kate e Gigi se enfiaram no carro do Tom. Vi o olhar desamparado da Malu para eles, como se Kate ou Gigi fossem seu elo com um mundo seguro. Eu estava desamparado pra caramba também. Resmunguei pro Mick:

-Podia ter me avisado antes pra lavar a van.

-Que viadice é essa agora? – Mick me olhou sem entender.

Cara, tinha todo tipo de lixo dentro do carro e, pra piorar, Aloysius tinha vomitado nela na noite anterior e eu não tinha conseguido tirar o cheiro. Abri a porta e me toquei que tinha até uma mancha de porra. Comecei a pensar "Vai no banco do carona, vai no banco do carona, não senta em cima da porra, não senta em cima da porra".

Lógico que ela sentou em cima da porra. Me senti desrespeitando a menina em todos os níveis possíveis.

Fomos a uma lanchonete onde Kate dominou a conversa. Sabe aquele tipo de pessoa que tem sempre de fazer tudo girar em torno dela? Tenho zero paciência pra isso quando o mundo está girando no seu eixo, mas eu não me importei naquela noite. Eu estava observando. Como a Malu tomava a Coca-Cola. A delicadeza com que colocava a lata sobre a mesa. Ela era simples, mas havia majestade em tudo que fazia, e não havia como um garoto pobre como eu não ficar hipnotizado. Seu rabo de cavalo. Acho que memorizei até a curva da sua orelha. Ela falava muito pouco. Eu, só quando alguém me perguntava algo diretamente, normalmente eu não respondia, aí me davam um tapa nas costas e em seguida tinham de me explicar qual era o assunto.

Eu estava encantado, pois só um feitiço era capaz de me fazer sentir daquele jeito.

E, ao pensar em magia, as palavras da cigana me vieram à mente:

"Você vai se apaixonar. Se apaixonar de verdade. Um amor dos livros, desde sempre e para sempre. Eterno. Um amor infeliz. E, se você permitir, ele vai te destruir."

Cheguei em casa puto. Com a minha falta de iniciativa, com a previsão da cigana, com tudo. Tom não tinha feito um movimento pra pegar a menina, embora "pegar" soasse totalmente inapropriado em relação à Malu. Fui bater timidez com a minha própria e inesperada timidez e o resultado foi que não dissemos uma única frase um para o outro. Até nossas despedidas haviam sido genéricas.

Bravo, peguei o caderno ao lado da minha cama e escrevi:

"Tocamos hoje no Revenge. Foi do caralho. Singe levou umas amigas, umas meninas super legais, duas brasileiras, claro que o Vince pegou a mais gostosa. Aí depois fomos comer e a van com um puta cheiro de vômito de ontem à noite. Só pra piorar, a menina mais calada sentou em cima daquela mancha de porra. Caralho, o problema do mundo é a falta de comunicação. Mick devia assumir logo que tá a fim da Singe, para ela pelo menos avisar que vai assistir a gente e vai levar as amigas e eu poder lavar a van antes."

Quando se quer controlar sentimentos, o melhor é se ater aos fatos.

Quando se quer controlar sentimentos, o melhor é se ater aos fatos

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O Lado Escuro da Lua - Primeira GeraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora