(1986) Renata: Mas minha sobrinha era a Kate

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Que minha santa e velha irmã não me escute, mas, da última vez que nos falamos ao telefone, sobre o destino da minha santa e velha sobrinha, eu estava inteiramente bêbada e com um homem arrancando a minha roupa.

Eu não era mais uma novata em Londres, mas ainda ficava fascinada com o conceito de happy hours, dois drinques pelo preço de um, homens me achando a coisa mais fabulosa do mundo ainda que eu estivesse de óculos e há uma semana sem lavar o cabelo. Não, não, nunca passei uma semana sem lavar o cabelo, embora poderia, se quisesse, e ainda assim conseguiria entrar em um bar e escolher com quem queria voltar pra casa. Ser brasileira na Europa é o máximo.

Naquela noite, escolhi o Damon, funcionário do departamento pessoal do banco. Chegamos ao meu apartamento já tirando as roupas quando o telefone tocou. Não me passou nem remotamente pela cabeça entender, mas a secretária eletrônica pegou a ligação e eu ouvi a voz da Cecília:

-Alô? Alô? Alouô?

-Ela não sabe o que é uma secretária eletrônica? – Damon perguntou, trabalhando nos botões da minha blusa.

-Nem ideia – Falei e peguei o telefone pelo motivo mais babaca do mundo. Queria que Damon me ouvisse falar português. Vai que ele pensasse que era sexy.

-Oi, Cecília! – Credo, desde que nasci, nunca falei com a minha irmã com tanta animação. – E aí, o que conta de novo?

Cecília ficou em silêncio. Ela provavelmente não sabia como reagir a uma pergunta feita por uma pessoa normal sobre como ia a sua vida.

-Renata, a Maria de Lourdes parte amanhã – Ela saiu pela tangente, ou seja, me ignorou.

-Sim, sim, sim! – Eu ri, mas porque o Damon estava tirando a minha calcinha e se embolou com o fio do telefone, não por causa da partida da Maria de Lourdes. – Vou sair mais cedo do trabalho.

-Não tenho fotos suas para mostrar para ela reconhecê-la – Claro que não. Por que teria? Nosso ódio é mútuo. – A Maria de Lourdes não mudou muito, mas aconselho que você leve uma plaquinha com o nome dela.

Ficar igual a guia de agência de turismo segurando uma plaquinha com "Maria de Lourdes" escrito? Mas nunca!

-Sangue reconhece sangue, Cecília, e não vi a Maria de Lourdes há tanto tempo assim – Engrolei. – Pode ficar descansada que não vou perder a sua filha.

Desliguei o telefone. A verdade é que eu não tinha tanta certeza se a acharia ou não.

Mais tarde, bem mais tarde, acabei contando ao Damon que receberia uma sobrinha do Brasil, que não nos víamos desde que ela possuía onze anos, e que ela viria morar comigo. Estava tão bêbada que mostrei até o quarto.

-É um quarto de verdade!

-Não, é um quarto de brinquedo – Eu dei uma gargalhada.

-Tudo isso pra uma pessoa que você nem conhece direito?

-É – respondi, confusa.

Por que mesmo eu estava fazendo tudo isso por alguém que nem conhecia direito, que seria uma adolescente se infiltrando na minha vida perfeita de mulher solteira e que havia sido criada pela Cecília?

Nunca descobri a resposta.

Sei que estava muito nervosa no dia seguinte. Já acordei com um frio no estômago. O dia pareceu eterno. Ficava imaginando a cara da Maria de Lourdes e como seria a amiga dela, se seria meio bocó, outra velha, ou uma pessoa normal. E aí concluí que, já que elas morariam comigo, era melhor que eu tivesse mais boa vontade. Começaria por passar a chamar a Maria de Lourdes de Malu.

Saí mais cedo, fui em casa pegar o carro e me dirigi ao aeroporto. Olhei o número da companhia e do voo e pela primeira vez me toquei que elas existiam, que aquilo estava realmente acontecendo, e jurei para mim mesma que, houvesse o que houver, eu não abriria mão do meu estilo de vida. Se fossem duas velhas, elas que se adaptassem. Se não fossem, a gente poderia até se divertir.

Avião chegando. Avião pousando. Foi a primeira vez desde que parei de fumar que realmente senti falta de um cigarro. Eu estava naquele nervosismo inquieto em que eu tinha de fazer qualquer coisa. O avião pousou e fiquei aguardando, tentando fingir normalidade, até que os passageiros começaram a sair no saguão de desembarque. Será que sangue reconhecia mesmo sangue? Já haviam saído várias pessoas e uma delas podia ser a Malu, perdida, e eu igual a uma tonta esperando. Pensei em pescar um lenço de papel na bolsa e escrever seu nome com batom.

Estava nisso quando vi duas meninas que não poderiam ser mais diferentes uma da outra. Fiquei fascinada pela mais baixa. Aquela, sim, poderia ser a Malu. Era vagamente semelhante à menina pequenininha e magrinha que eu havia visto pela última vez há pelo menos seis anos e tinha bastante semelhança com meu falecido cunhado. Mas o que me chamou mesmo a atenção foram suas roupas, como se estivesse em uma excursão da igreja. Ela usava uma calça de pregas com o caimento totalmente errado, empapado na frente, uma camisa toda abotoada e uns sapatos pesados e feios além de qualquer salvação. Parecia um pastor de uma daquelas igrejas bem medievais, e não uma adolescente. Sua amiga, vestida como uma adolescente de verdade, de jeans e botas, sorria tanto que parecia que ia rasgar o rosto. Foi ela que tomou uma iniciativa.

-Renata? Chegamos! – Ela saiu correndo e me abraçou como se nos conhecêssemos. Fiquei tão aliviada que a abracei de volta, e aproveitei o momento para abraçar a garota estranha. Eu estava tão tensa que não parava de falar. Cheguei até a acusar o espanhol da padaria de assédio sexual.

-E a viagem? – Achei por bem perguntar, quando íamos para o carro com a quantidade imensa de bagagem das duas.

-Interminável! Eu nunca tinha viajado para o exterior, nunca tinha passado tanto tempo sentada! – Kate respondeu pelas duas e olhou o relógio. – Gente, que horas são?!

-Nove, mas no inverno é assim mesmo, o dia clareia daqui a pouco. E você, Malu? Gostou da viagem? – Resolvi perguntar pra ver se a criatura abria a boca.

-Sim. Obrigada – Ela respondeu timidamente.

Nossa, que inferno!

Fomos para casa, comigo falando compulsivamente e totalmente acelerada. Eu tinha esperança que a Malu fosse só reprimida, sabe? Que ela fosse esquisita porque a Cecília a obrigava a ser assim, mas que, assim que saísse de sob a sua asa, enrolasse as roupas para encurtá-las, enchesse a cara e beijasse muito na boca, como eu fazia quando tinha a sua idade. Mas não, parecia que a menina tinha outra personalidade, e tive muito medo de ela ficar falando mal de mim e fofocando sobre a minha vida quando ligasse para a mãe. Não que eu me importasse. Pelo menos, não deveria me importar. Mas o fato é que, já que era para ter colegas de apartamento, então que pelo menos elas fossem minimamente como eu.

Chegamos, fiz o tour do apartamento e as deixei à vontade para arrumar as suas roupas ou descansar da longa viagem. Malu abriu suas malas, arrumou tudo metodicamente e dormiu. Kate largou tudo pelo caminho e perguntou se poderíamos passear, o que eu poderia lhe mostrar, sacou um guia de Londres e começou a me fazer perguntas. Malu podia ser filha da minha irmã, mas minha sobrinha era a Kate.

Quando já estávamos há um bom tempo sozinhas, perguntei à Kate se a Malu dormia tanto assim, pois já estava preocupada.

-Eu não sei – Ela respondeu.

-Vocês não são melhores amigas?

-Correção: Sou a única amiga da Malu. Única e absoluta. Mas depois que ela sai da escola, não faço ideia dos seus hábitos. A sua irmã é meio assustadora – E acrescentou, às pressas: - Sem ofensa.

-Não me ofendo nem um pouco. Mas me diga – Falei, já que estava curiosa para saber como a Malu havia conseguido uma amizade, e a de alguém como a Kate: - Se vocês só se veem na escola, como são tão amigas?

-Ela é o meu estudo de caso. Sabe iceberg, que só tem a pontinha pra fora da água e um mundão embaixo? A Malu é assim. Estou tentando descobrir o mundão.

Resolvi tentar descobri-lo também.

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Esse POV é comemoração dos 30 anos da chegada da Malu a Londres em Canções da Minha Vida,

O Lado Escuro da Lua - Primeira GeraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora