Dias se passam e o tempo parece me sufocar.
O treinamento de Gwen é contínuo. Pausamos as tardes para comer, ou para buscar comida e a noite - quase madrugada - para dormir.
Sou eu quem busco a comida quando está acabando.
Como sou o único que não está sendo procurado, preciso ir à loja mais próxima para comprar a comida. O caminho é longo, sempre vou a uma loja de estrada que fica á trinta quilômetros de distância da casa dos avós Evans.
Gosto do trajeto, de ir sozinho. Faz-me pensar nas minhas teorias, nos acontecimentos, refletir sobre meu poder. Gwen pede que eu não fique tão avoado, pois posso ser pego distraído, então prometo a ela que me concentrarei nas árvores e em tudo em minha volta. Quando o clima decide ajudar, nevando, Gwen tem que me levar até metade do caminho, para derretê-lo, então ela faz questão de vigiar qualquer coisa, qualquer movimento suspeito. Não conversamos muito. Na verdade, mal nos falamos nos últimos dias. Apenas frases como: Andrew foque; Andrew, vamos adicionar mais peso para você levantar e mais objetos para atirar em você; Gwen vou comprar comida; Gwen preciso que me leve para comprar comida, pois você sabe... nevou.
Acho que precisamos disso, está bem assim. Nenhuma distração para ambos. Nenhuma preocupação á mais.
Hoje ela não precisou vir, não nevou. Fico até mais aliviado, sem a pressão do silêncio, dos assuntos que ainda temos que conversar.
Ou será que não temos?
Beijamos-nos, não foi? Aconteceu alguma coisa. Temos que conversar. Ou não?
A porta da loja assobia anunciando a minha entrada, um barulho irritantemente chato.
Vou direto para a parte de enlatados, é o que comemos agora. Precisamos economizar dinheiro, já que boa parte vai ser para pagar Leila e o seu tal amigo falsificador. Não faço a mínima ideia de como vamos arrumar dinheiro para sair deste país, e, sinceramente, estou evitando ao máximo pensar nisso.
O atendente me encara com um sorriso debochado escancarado em seu rosto. Quase soltando um riso. Provavelmente por conta das minhas roupas, que na verdade são do avô de Ravi, umas de suas muitas peças de frio.
Um casaco marrom de cor quase encardida, uma calça de moletom verde tão folgada que dança no meu corpo a cada passo que dou; uma touca de gorro e uma bota um tanto esquisita. Ignoro-o totalmente.
Sopa.
Feijão.
Arroz e salsicha.
Tudo enlatado e bem mais barato, é o que compro. Mesmo que esteja com uma aparência velha e de que está aqui há séculos, precisamos economizar.
Economizar, pareço até com meu pai quando íamos ao mercado ou shopping, a lembrança me trás certo jubilo. E o atendente parece rir mais. Provavelmente deve achar que sou algum louco.
Ele passa as latas, fazendo um bip constante e ritmado. Ora olha para mim ora para as latas.
- Qual a forma de pagamento, garoto? - ele pergunta entre suas mascadas de chiclete.
- Dinheiro - balbucio.
Retiro o dinheiro da jaqueta envelhecida. Vinte dólares.
Entrego para ele e pego a sacola sem esperar que ele conte, sem esperar pelo troco que não tem. E ele repete a frase robótica:
- Muito obrigado por comprar na Grant, tenha um bom dia, volte sem... - a porta se fecha antes que ele termine.
Já até decorei. Mesmo que não tenha a mínima importância, eu venho decorando e prestando atenção em tudo. No balançar das árvores, e o poder que o vento tem sob elas; no voar das aves, no som do mar que não fica tão distante.
Possivelmente por conta do meu poder, por conta das respostas que tanto procuro. Digo a mim mesmo que qualquer detalhe, minimamente que for, é necessário atenção. Não posso deixar nada passar despercebido, não mais.
Eu venho treinando bastante. Mesmo quando não estou de fato em treinamento, eu o exercito, como um músculo. Talvez um músculo mental. E isso parece doer, a cada dia dói mais. E hoje está a ponto de explodir. Não só a cabeça, mas o corpo também. Porém é uma dor suportável, principalmente por que sei que isso quer dizer que estou esforçando o corpo e a mente.
Levito folhas, movo papéis no chão até o lixo, as vezes até balanço uma coisa ou outra e é assim que vou exercitando sem que me deixe cansado.
Outro dia, Gwen quase me matou de esforço quando pediu que eu levantasse Bryan. Foi um choque. Para ambos.
Fiquei nervoso, pois até aquele dia eu só tinha levantando objetos, nada vivo. Ainda consegui até certa altura, mas logo fui me cansando e tive que soltá-lo.
Então o joguei. Ele caiu exatamente onde estava um colchão velho que estávamos usando para treinar alguns golpes no chão. Foi o que o salvou.
Uma queda de quase quatro metros. Fiquei preocupado de início, mas quando Bryan abriu um sorriso saltando em um tipo de movimento que provavelmente havia aprendido com Gwen - se apoiando nas duas mãos e jogando as pernas para frente em um salto -, me aliviei e senti até certo orgulho. Foi bastante alto e, considerando o peso de Bryan, uma boa primeira tentativa.
Estou tão perdido ultimamente, tão distraído com outras coisas que já até havia esquecido que dia é hoje.
Dezessete anos, estou completando dezessete anos de vida. Anos que parecem não fazer sentido nenhum agora, não valer de nada.
Hoje é meu aniversário, o primeiro longe de meus pais. Não fiz questão de lembrar ninguém, até por que não interessa. Não mediante da nossa situação. Pouco importa quantos anos estou fazendo ou já fiz, temos coisas mais sérias para resolver e se preocupar.
O caminho é pequeno para a quantidade de pensamentos que possuo, logo estou chegando à casa dos Evans. Passo pela cerca e adentro em direção a casa.
Noto de relance o galpão. Sei quem está lá, não preciso ter o poder de visão raio-x para saber. Não é algo difícil.
Gwen e Bryan. Eles têm passado bastante tempo juntos nos últimos dias. Bryan se esforça para treinar e, aparentemente, está conseguindo. Ele não quer ser inútil, um empecilho em meio à luta. Eu o entendo. Mas o constante tempo que os dois passam juntos me preocupa e eu não sei exatamente o que isso significa.
Eu não devia me sentir assim. É errado. Bryan é meu melhor amigo, não faria nada que me machucasse. Acho que estou pirando completamente.
Chego a porta da casa e a abro, não está trancada. A luz está apagada e isso me assusta. Por que nunca apagam essa luz e sempre há alguém aqui, principalmente o Ravi que fica jogado no sofá vendo tevê, "descansando".
Respiro fundo.
- Pessoal? - ponho as mãos sobre o interruptor.
Preparado para qualquer coisa acendo a lâmpada, trazendo luz a sala.
Nada.
Não há ninguém ali, até que...
Sombras saem da cozinha. Estão batendo palmas e cantarolando algo.
Sou rápido, com um movimento de mãos jogo o que havia na mão de um deles na cara de outro. Levanto um com a outra mão pelo pescoço sentido todo o seu peso diante do meu poder.
- ANDREW! ANDREW SOLTE-O, VOCÊ ESTÁ MACHUCANDO ELE! - a voz de Gwen me invade.
Então retomo a consciência e solto a pessoa no chão, sem me importar muito com a altura. Percebo que estava o sufocando, como se estivesse com as minhas próprias mãos em seu pescoço. Ele tosse.
Ele não. Bryan tosse.
Naquele momento digiro a situação e o que acabo de fazer.
A coisa que lancei, era um bolo. Um bolo simples, que agora faz parte do rosto de Ravi, feito para mim. Gwen ajuda Bryan e o leva para cozinha, Luna me encara paralisada.
- Mas que merda está havendo com você, cara?! - esperneia Ravi, tirando excesso de bolo dos olhos. - Agora vou ter que tomar outro banho, não sei por que ainda não te dei uma surra.
- Desculpa... eu não - ele passa por mim sem sequer dar ouvidos e sobe as escadas sem ao menos olhar para trás bufando. - Eu não fazia ideia - sussurro.
- Como... como vocês descobriram? - pergunto para Luna.
- Bryan nos contou já tem alguns dias. Ele queria fazer uma surpresa, Gwen disse que era perca de tempo, mas ele insistiu. Agora me deixe limpar essa sujeira.
Ela diz saindo em busca da vassoura na cozinha.
Bryan sabia do meu aniversário. Como pude ser tão tolo a ponto de pensar que meu melhor amigo esqueceria? O que está acontecendo comigo? O que eu fiz?
Penso em à cozinha me desculpar, mas não consigo. Jogo a sacola com os enlatados no sofá e saio da casa.
Paro na porta e me perco em meus pés.
Começo a caminhar, sem rumo, só para refletir.
E Quando me dou conta, já estou dentro do galpão. Algumas coisas ainda estão espalhadas no chão, objetos que usamos em nosso algumas horas atrás. Passo por entre eles, desviando para não fazer barulho, e paro olhando para o andar de cima do galpão.
Viro-me para a porta do galpão, me certificando que ninguém vai aparecer e me ver.
Os meus olhos se fecham em concentração. Em algo que venho treinando secretamente. Sinto e imagino todo o peso do meu corpo.
Uma leve pressão acontece quando meus pés já não estão mais no chão. Pés leves, mãos soltas e um frio na barriga. Foco no andar e guio meu corpo para lá. Em alguns momentos me desequilibro, descendo um pouco, mas mantenho-me focado e logo estou com os pés na parte de cima do galpão.
E as pontadas na cabeça aumentam, mais frequentes a cada segundo, mais incômodas.
Desvio dos muitos trecos jogados ali, encontrando um canto na parede.
Agacho-me, então uma janela se abre, uma que eu não sabia que existia ali.
O céu está estrelado, o vento uiva devagar.
Queria estar em casa. Lendo algum livro enquanto espero pela janta. Ouvindo minha mãe cozinhar ao som de uma música que desconheço.
Respostas, eu só preciso disso. Preciso entender tudo.
Quero saber, por que a gente? Por que eu? O que eu sou e do que sou capaz? Eu realmente gostaria de parar de fazer essas perguntas, mas não consigo. Não posso. E a quantidade só aumente e me perturba. Nas noites que consigo dormir, nos momentos em que fico sozinho, elas surgem. Martelando cada neurônio, não me deixando esquecer que elas existem e que são inúmeras.
Como será os outros?
Que tipo de poder terão?
Encontraremos os pais de alguns deles?
Conseguiremos alguma explicação?
Não faço nem ideia de como vamos chegar aos outros lugares.
Uma mão me toca no ombro.
Sou tomado pelo susto, mas desta vez me seguro quando vejo o rosto de Bryan me encarar com certe receio, medo talvez.
Porém, ele sorri. O famoso sorriso brilhante e encantador de meu amigo.
Ele se senta de frente para mim, impressionado com a janela que provavelmente também não sabia que existia.
- Como você sabia que eu estava aqui?
- Bom, estamos meio que sendo caçados por todo o país, você não iria tão longe. E aqui não tem muitos lugares para se esconder.
- E como você subiu?
- Eu não faço ideia de como você subiu, mas eu usei a escada.
Esboço um sorriso e assinto com a cabeça.
- É... me desculpe por aquilo. Eu, eu não sabia...
- Ei cara, foi um baita susto. E, bom... foi legal ver que você melhorou - ele olha para fora da janela.
- Obrigado - digo.
E ele entende a mensagem. Agradeço por me entender; por estar aqui; por ser o amigo que não mereço.
- Você anda estranho, cara. Quase não fala com a gente, passa quase todo o momento levantando uma coisa ou outra e falando sozinho. Não sei quando foi a última vez que te vi rir.
- Uma coisa que não sou bom é em fingir, você sabe disse mais que qualquer um aqui. - umedeço os lábios e continuo: - E felicidade ou alegria, não é exatamente o que estou sentindo nos últimos dias. Existem objetivos mais importantes.
Agora sou eu quem o encara, ele não demonstra qualquer sinal de espanto.
- Eu sei de tudo isso - ele sussurra quase que para si mesmo. - Estou nessa junto, você sabe, não é?
Seus olhos me investigam á procura de qualquer sentimento que possa transparecer. Mas a minha confusão mental o ofusca, me ofusca. Frustrado por não saber como lidar com o melhor amigo ele volta a olhar para a lua.
- É diferente Bryan. Você pode sair dessa bagunça quando quiser, sem frustrações. A sua relação com tudo isso é totalmente indireta.
Bryan não responde. Ele suspira, se levanta e começa a caminhar desviando das tralhas.
Até que seus passos param na beirada, onde vejo a ponta da escada. O olhar dele me atinge, de lado, triste. Neste momento acredito ter perdido meu amigo para sempre. Nada mais que merecido, meu subconsciente caçoa.
- Eu posso não ter poderes como vocês, posso não estar sendo procurados por uma espécie de alienígenas feiosos, mas já estou tão envolvido nisso tudo quanto você ou qualquer outro. Estou sendo procurado pela merda do país inteiro, e você acha mesmo que ainda não faço parte disso? - ele espera pela minha resposta, mas ela não vem. - Meu pai também está desaparecido, Andrew!
Pressiona seus lábios e me impressiono com sua expressão, insegurança, medo.
- Mas nada disso é suficiente para você, não é? Você só consegue pensar em como me tirar dessa, porém nunca fez questão de me perguntar o que eu queria. E vou dizer, mesmo que não queira saber, não há nada e nenhum lugar que eu queira estar se não aqui. Sinto que é o certo a se fazer, é o que devo fazer e onde eu tenho que estar..
- Isso não é um jogo, Bryan. Você quer mesmo arriscar a droga da sua vida?! Por acaso já pensou no que seus pais diriam? Por acaso já pensou em como eu ficaria se algo acontecesse á você? Já passou pela sua cabeça que você pode morrer á qualquer instante? Merda Bryan, você viu o que aqueles caras fizeram com a perna de Gwen?! - objetos tremem sobre a minha alteração de voz, tento me manter calmo. - Com certeza isso é só começo, e você tem noção. Não se faça de cego. Tem muita coisa em jogo.Você não pode simplesmente escolher deixar tudo para trás para se aventurar em uma viagem turbulenta, onde o problema não é apenas o clima ou algo técnico do avião, e sim monstros assassinos que não fazemos a mínima ideia do que sejam. .
- Então é este o problema? - um sorriso esboça-se em seus lábios.
- O que?
- Eu posso escolher, não é? Ou você acha que posso, no mínimo. O que não foi o seu caso. O que você não daria para sair de tudo isso, não é mesmo? - Bryan jamais me dissera palavras tão cortantes.
- Essa não é a questão, Bryan - minhas bochechas esquentam. - Mas é claro que não queria estar aqui, nada disso é brincadeira. Nossas vidas correm perigo, nossos pescoços. Você não pode simplesmente jogar na minha cara que eu não queria estar à beira da morte, sem meus pais, sem qualquer resposta do que eu sou, sem dinheiro, sem rumo, só por que está com ciúmes por não fazer parte dessa loucura. Como se fosse algo simples... eu queria que fosse, mesmo que eu não faça ideia do que seja tudo isso, mas não é. Você entende o que quero dizer?
Ele suspira. Seus largos ombros sobem e descem.
- Vou avisar á Gwen que, pelo menos, eu tentei.
- O que ela tem a ver com isso?
- Fale com ela se quiser saber. Bom, vou indo. Boa noite.
- Bryan... você entende?
Já na escada ele não me olha, não depois de tudo que disse. Imagino que nunca mais olhará.
- Só não enlouqueça solitariamente, cara - ele sorri. - E, aliás, feliz aniversário.
Ergue as sobrancelhas sarcástico e faz um sinal de tchau.
Por que ele não me odeia? Por que ele simplesmente não vai embora depois de tudo o que disse?
Feliz aniversário.
Eu não mereço, como ele pode?
Deito-me sob a parede de madeira. Tentando, novamente, entender tudo isso. Um ato de suicídio, quase, mas não tenho tanta sorte. Só fazem minhas dores piorarem.
As ignoro.
Elas replicam aumentando a progressividade com que batem na minha, irritadas. Fazem-me esquecer de tudo por alguns minutos, ao menos servem para algo.
Aos poucos vou me perdendo, me entregando á escuridão. Os olhos pesam e a consciência delira com as dores.
O luar é meu único companheiro esta noite. Sussurro um "boa noite" para ela e me perco no mundo dos sonhos.
Um mundo onde eu posso ser normal.
Ou não.
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O Destino Dos Guardiões - Em Revisão
Science FictionEm uma noite comum como todas as outras. Alguns astrônomos detectam um cometa que surgi no céu repentinamente, seu local de queda é uma floresta. Então para assegurar que nenhum civil aproxima-se do cometa, mandaram cinco agentes para o local da que...