8. VITAMINA DE MORANGO

706 91 37
                                    



Essa noite não foi como as outras. Eu liguei o liquidificador, depois liguei o radio, depois assisti a um filme em alto e bom som.

Minha vista já estava turva de tanta televisão. Depois de dois copos enormes de vitamina de morango, não agüentava mais com o peso dos olhos. Alcancei o controle remoto e quando desliguei o televisor escutei sons que vinham do apartamento ao lado.

Entrei em êxtase sem saber bem ao certo o motivo. Me concentrei ao extremo, mas ouvir do sofá não estava me satisfazendo.

Levantei do sofá me desenroscando das cobertas indo em direção ao meu quarto. Tentei abafar o som dos meus passos correndo na ponta dos pés que vestiam uma meia de lã grossa.

A noite estava gelada, mas nem o frio que estava sentido evitou que eu continuasse a espionar o vizinho. Eu não tinha mais pudor, não pensava mais nem duas vezes antes de meter a orelha na parede e xeretar a vida do dele. Quando terminei de me posicionar na parede gelada, pude ouvir uma música. Alguns segundos depois escutei o chuveiro ligando e parei. Empurrei a parede, mas obviamente quem foi pra trás fui eu. Parei catatônica encarando a parede. Meus pensamentos (impróprios) estavam funcionando com uma velocidade fora do comum. Era como se a parede não existisse mais na minha frente, fato que me perturbou profundamente. Talvez eu não achasse legal se um vizinho fizesse a mesma coisa comigo enquanto eu estivesse no banho. Invadir a privacidade do meu vizinho da forma que eu estava fazendo não era legal. Eu precisava parar.

Deitei na minha cama, cobri meu rosto e tentei abafar o som, mas não tinha tanta força de vontade quanto imaginava.

Quando o ar começou a ficar pesado e descobri meu rosto para respirar, ainda conseguia ouvir um pouco. Não resisti. Parei de segurar meus pensamentos. Não tinha como eu soterrar estes. Imaginei o que ele poderia estar fazendo naquele momento, a disposição dos moveis no quarto dele ou a cor do pijama, se é que ele estaria usando um. Esse último pensamento fez com que eu colocasse as duas mãos na boca em desaprovação.

Meus olhos estavam arregalados mirando o teto que eu, na realidade, nem enxergava com as luzes todas apagadas.

Logo o barulho foi diminuindo até que eu não pudesse escutar mais nada. O sono foi tomando conta de mim e eu adormeci invadindo mentalmente a privacidade alheia. E foi estranhamente confortável.

Nos dias que se passaram, eu saia e entrava correndo em casa com um medo estúpido e infantil de encontrar com aquele homem.

E foi assim que aconteceu durante um mês inteirinho, nada de vizinho na pâtisserie, mas em compensação eu escutava suas músicas e algumas raras vezes o grave da sua voz, certamente ao telefone, já que não havia resposta. Em alguns dias da semana eu notava que ele parecia estar em casa durante a noite, mas não era uma coisa regular, exceto às terças-feiras. Nestes dias ele não parecia dormir em casa definitivamente.

Às terças-feiras ele começou a fazer sempre a mesma coisa. Chegava à pâtisserie, um pouco antes ou depois da madame Delacroix, pertinho de anoitecer. Acredito que tenha ficado viciado em Madonnas. Sempre com um livro a mão, comia bem e bebia café. Por volta de uma hora depois ia embora.

Eu voltava para casa e, como uma boa esposa rabugenta, nas quartas-feiras durante a manhã, esperava que ele batesse sua porta para que eu me tranqüilizasse por ter chegado em casa.

Sem ter conhecimento algum, ele se tornou parte da minha vida. Eu chegava a vasculhar a mesa que ele sentava na pâtisserie procurando por qualquer coisa a seu respeito. Sempre que seu copo de suco ou sua xícara de café chegavam à cozinha, eu inspecionava tudo, mas com muita discrição. Ficava com esperança de encontrar alguma anotação sua, ou qualquer coisa que me desse mais sobre ele além do que eu sabia apenas escutando através da parede. O que era, na verdade, absolutamente nada. Eu não sabia bulhufas a respeito dele.

O Novo InquilinoOnde histórias criam vida. Descubra agora