Capítulo XIV

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Uma vez era Halloween e eu e algumas amigas minhas decidimos fazer Doçura ou Travessura. Éramos eu, a Trisha, a Robyn e a Joanna, todas minhas amigas da natação.
Numa das ruas, porém, encontrámos um grupo de rapazes mais velhos da nossa escola. Eles eram mesmo os típicos rufias e começaram a bater-nos e a exigir que lhes déssemos os nossos doces.
Eu e as minhas amigas passámo-nos porque não estava ali mais ninguém e fizemos a única coisa que nos pareceu realista. Fugir.
Era a mesma sensação que eu estava a sentir agora mesmo, mas três vezes pior. Porque não eram quatro rapazes malucos que nos iam roubar os rebuçados. Eram três lobos que estavam absolutamente furiosos.
Todos disparámos em direções diferentes, sem a mínima noção que percurso tomar. Os lobos uivaram uma última vez e depois lançaram-se na perseguição.
- LYRA, CORRE! - Berrou o Alex.
Mas correr para onde?!
Um dos lobos cheirou o ar e visualizou de repente a Eleanor. Ela estava a correr como uma maluca para dentro do edifício, e o lobo foi atrás dela.
A Eleanor levou três segundos a perceber que estava a ser perseguida, e esses três segundos foram fatais.
O lobo saltou sobre ela e atirou-a para o chão. O barulho do pescoço da Eleanor a bater na pedra ecoou nos nossos ouvidos.
Ela gritou e começou a esbracejar desesperadamente, mas o lobo não perdeu tempo.
O berro da Eleanor quando os dentes do animal penetraram o seu braço ficou-me na memória para sempre.
- Eleanor!! - Gritou o Leonard. - Não!!
Os outros dois lobos, ao verem que o seu companheiro apanhara algo, lançaram-se a ele e atacaram.
O pior não era ouvir os gritos da Eleanor. O pior não era ouvir a carne a rasgar. O pior não era ver uma poça de sangue lentamente a formar.
O pior era estar ali estáticos, sem poder fazer absolutamente nada para a ajudar.
- Oh meu deus - soluçou a Gabby, atrás de mim.
- GENTE ACORDEM! - Berrou o Josh de repente. - SUBAM ÀS ÁRVORES!!
Ele tinha razão. Dois dos lobos perceberam que uma pessoa que não era alimento suficiente e que havia outras 26 ali paradas para servir de almoço.
Eles começaram a correr.
Nós começámos a correr.
Não conseguia distinguir as pessoas à minha volta enquanto corríamos. Apenas via manchas de cores e cabelo, gritos de fundo e rosnadas a poucos metros de nós, à medida que sprintava em direção aos pinhais que eram a nossa única salvação.
Eu era das primeiras pessoas, ou seja, as mais rápidas, e quando entrei nos pinhais levava dez metros de avanço aos lobos. O Kay já estava a subir as escadas do arborismo e a Maya, que se revelara surpreendentemente veloz, estava agarrada a um ramo e não parecia querer descer.
Vi uma árvore mesmo ao lado, com ramos baixos e esguios, ótimos para subir.
Mas eu não ia subir. Não antes de ver o Alex.
O meu irmão gémeo era a minha prioridade absoluta. A Gabby, o Alfie, o Kay, o Michael e eu própria, passou tudo para segunda prioridade enquanto passava os olhos pela floresta à procura da cabeleireira loira.
Os lobos chegaram nesse momento e havia ainda mais ao menos quinze pessoas no chão, eu incluída.
O meu cérebro dividira-se em duas partes: o instinto de sobrevivência e o instinto familiar.
"Lyra sobe enquanto podes, enquanto um dos lobos não te ataca, vai!!"
"Lyra, o Alex. Onde está o Alex. Tens de encontrar o Alex."
O instinto familiar venceu.
- Alex!! - Gritei.
E então percebi outra coisa.
O William, o lento e rechonchudo William, tropeçara. Estava agarrado ao tornozelo e estava a hiperventilar, enquanto olhava desesperado à sua volta à procura de uma árvore ou de uma ajuda milagrosa.
O lobo maior, aquele de pelo acizentado, viu-o de repente e rosnou. Estava a salivar e começou a avançar lentamente na sua direção.
- NÃO!! A-afasta-te!! - O William começou a rastejar, desesperado. Pegou num ramo seco e atirou-o ao lobo. Com uma surpreendente pontaria acertou no olho esquerdo.
O lobo latiu de dor e contorceu-se de repente, antes de saltar furioso para cima do William.
Não foi nem o instinto de sobrevivência nem o instinto familiar que agiram então. Foi algo que não sei explicar, algo que veio de repente, um impulso que, agora que penso, foi a coisa mais irracional e perigosa que jamais fiz.
Peguei numa pedra e atirei à cabeça do lobo.
Ouviu-se um craque estranho e uma pequena explosão de sangue. O lobo caiu para o lado e soltou um uivo que pareceu quase humano, de tanta dor que se exprimiu. Depois olhou para mim.
Tinha o lado esquerdo da cara todo sangrento e um corte fundo no meio do pêlo. E os seus olhos amarelos estavam fixos em mim.
O William susteve a respiração e olhou para o lobo.
Eu sustive a respiração e olhei para o lobo.
O lobo saltou.
Fechei os olhos e esperei.
Esperei pelo impacto.
Esperei pelos dentes dele.
Esperei pelo pêlo sangrento a bater-me na cara, as patas a prender-me ao chão e a dor.
Mas então ouviu-se outro grito.
O Michael saltou do pinheiro onde estava e aterrou em cima do lobo.
O lobo rosnou de surpresa e começou a saltar, ladrar, rosnar e morder, no meio de contorcidas para abocanhar o Michael. Ele agarrou-se ao pêlo do animal, fazendo os possíveis para não cair. O lobo pareceu endoidecer e desatou aos saltos e a atirar-se contra as árvores. O Michael era como se estivesse a cavalgar um toiro enfurecido.
E então não deu mais e o Michael caiu.
O lobo estava completamente raivoso. Estava a espumar e o sangue das feridas tinha-se misturado com o pêlo. O animal ficou ali, sem saber quem atacar: o William, parado no chão com o tornozelo torcido. O Michael, quase inconsciente a alguns metros. Ou eu, ali especada, sem saber o que fazer.
Quem ajudar? Quem salvar primeiro? Eu era a última pessoa que me importava neste momento. Tinha de encontrar o meu irmão. Tinha de ajudar o William a levantar-se e subir a uma árvore com o tornozelo naquele estado. Tinha de salvar o Michael e impedir que ele fosse a próxima presa do lobo. O Michael... que aterrara no lobo de uma queda de 30 metros para me salvar! EU estaria morta se não fosse ele. E a Daiana?! Fraca daquela maneira, como ia fugi...
- UM... DOIS... TRÊS!
Um ramo caiu do nada exatamente em cima do lobo.
O animal soltou um uivo alucinado quando o ramo se partiu no pescoço dele. Ouviu-se um estalido horrível e depois o lobo caiu no chão e ficou ali, de olhos revirados e a cabeça numa posição estranha, sangue misturado com a terra e o pêlo dele, e o ramo a bloqueá-lo.
Eu não sabia o que fazer. Era como se os nervos que ligavam o cérebro ao corpo tivessem adormecido. De onde tinha vindo o ramo? O que...
- Hey! LYRA! Aqui em cima!!
Olhei. No alto pinheiro, empoleirados no cimo, estavam o Alex (graças a Deus!), a Miranda, a Gabby e o Alfie
- LYRA! SOBE! - Berrou o meu irmão.
- Ainda há outros dois lobos!! VEM CÁ PARA CIMA JÁ!
O Alfie, a Gabby e o Alex berravam como uns doidos.
- Lyra!! - Era outra voz agora. O Michael, que aparentemente não estava assim tão inconsciente. - Lyra, acorda para a vida e sobe já!! Qual é o teu problema?!
O Michael parecia mesmo furioso comigo e os gritos dos meus amigos e do meu irmão ressoavam como som de fundo.
Mas eu não subi.
- Não, Michael. Deves achar que te deixo aqui.
- Grrr... Lyra, detesto TANTO quando fazes assim!! - Rosnou ele. - Atirei-me da árvore abaixo por ti e agora está a arriscar a vida só para te armares em heroína e me protegeres?! Salva-te enquanto podes!!
Abanei a cabeça, peguei no enorme ramo que o Alfie, a Miranda, a Gabby e o Alex tinham atirado para cima do lobo e pus-me à frente do Michael, com ele na mão.
- Não vou. Não te vou deixar aqui, principalmente depois de quase te teres matado por mim.
O Michael parecia completamente exasperado.
- Lyra, eu JURO que se tu morreres para me salvares dos lobos... eu juro que te MATO.
Não pude evitar um sorriso.
O Michael tentou levantar-se, mas gritou de dor quando mexeu a perna esquerda.
- LYRA - gritou o Alex. - SOBE!
Eu não ia deixar ali o Michael. Mas antes de lhe poder responder outra voz se sobrepôs à minha.
- MARTIN!
O outro lobo apanhara alguém.
Virei a cabeça, e imediatamente desviei o olhar de novo, mas era tarde demais.
Já vira o miúdo das Sardas, deitado no chão, e os dentes do lobo a enterrarem-se nele.
Martin, chamava-se... mas que interessava agora?
Já fora a Eleanor e já fora o rapaz.
Quem seria o próximo?
E então o Josh interveio.
- OH! Bicho! - Gritou. - Porque é que não te metes com alguém do teu tamanho?!
O Josh começou a atirar-lhe pedras e paus secos. A maioria caiu ao lado, mas um ramo acertou no dorso do lobo.
Este levantou a cabeça do Martin. Tinha o focinho todo cheio do sangue que jorrava do estômago do Rapaz das Sardas.
O Josh agarrou um pedregulho que estava no chão. Não demonstrava medo. Apenas fúria.
O lobo saltou para cima dele. O Josh saltou para o lado e o lobo derrapou na terra, virando-se e atacando de novo. Desta vez acertou. O Josh caiu ao chão e o lobo prendeu-o com as patas.
Os olhos do Josh arregalaram, desta vez sim, de medo. O lobo começou a tentar mordê-lo. O Josh agarrou-lhe o focinho e, com toda a sua força, manteve o lobo longe da sua cara.
Mas... durante quanto tempo ia conseguir?
Já toda a gente, de uma maneira ou outra, subira às árvores. Cá em baixo só estava eu, o Michael, o William e o Josh.
O William e o Michael não se conseguiam levantar.
Acho que todos chegariam à mesma conclusão que eu.
A próxima coisa que me lembro é de esmagar a cabeça do lobo com o ramo.
Eu própria não faço ideia de onde veio tal bola de coragem e tal força. O lobo uivou de dor e saiu de cima do Josh, rosnando e ganindo. Eu fiquei ali, de repente muito menos segura do que há três segundos atrás.
Agora não era o Josh nem o Michael nem o William em perigo. Era eu.
Correr.
Correr.
Correr.
Esta foi a mensagem que o cérebro enviou ao corpo, os nervos subitamente acordados.
Nem o Kay me teria ganho nesse momento. O lobo atrás de mim lançou-se na perseguição, e ignorando os gritos do Alex, os berros do Michael, preparei-me para a fuga que ia determinar se eu viveria ou morreria...
TUM.
Não sabia o que fora nem me interessava. O meu cérebro já nem pensava, concentrando-se simplesmente em fugir para o mais longe possível do lobo que estava a tentar apanhar-me...
- LYRA!
Era a voz do Josh... porque é que me estava a chamar...?! Não podia parar de correr, não podia...
- LYRA! Pára!! Volta para trás!!
Ouvi passos a correr atrás de mim. Mas o pânico era tanto que nem abrandei. Os passos aproximaram-se... mais perto... mais perto...
De repente dois braços agarrram-me, obrigando-me a parar. Arquejei, desesperada, antes de perceber que era o Kay.
- K-Kay...! Eu... o LOBO...
- Shhh... calma...! Lyra, o lobo morreu.
Na corrida e na massa de terror que me tinha envolvido, nem parara para tentar perceber que o TUM fora o Josh, com uma pontaria formidável, esmagara o crânio do lobo com o pedregulho de antes.
Olhei. Ali estava o lobo, deitado, morto, com sangue a sair do buraco que o Josh lhe fizera na cabeça.
Abracei o Kay, com o coração disparado, como se me quisesse sair do peito.
- Kay... estava tão assustada, TANTO... - Solucei, percebendo de repente que estava a chorar.
- Está tudo bem, Lyra... tudo bem. Já não há nenhum lobo atrás de ti. - Murmurou-me ele, beijando-me na testa.
Fiquei ali, nos braços do Kay, durante o que pareceu uma eternidade. Por fim, consegui respirar fundo, e já mais calma, separei-me dele.
- Lyra! Kay! - Gritou então alguém. Era o Julian, de cima de uns dos pinheiros. - Deixem o namoro para depois! Há outro lobo, caso não se lembrem!!
Oops.
Eu olhei para o Kay.
O Kay olhou para mim.
Automaticamente, olhei para além do prado para o edifício.
Lá ao fundo, mais ao menos 500 metros, dava para distinguir dois corpos parados.
A Eleanor.
E o lobo.
De repente eu e o Kay apercebemos-nos da mesma coisa.
Olhámos para a figura do lobo. Olhámos um para o outro. Olhámos para os outros, na expectativa, empoleirados nas árvores e olhámos de novo para o lobo.
- Gente - disse então o Kay - o lobo não se está a mexer.

Nós, agora 25, atravessámos o prado cautelosamente em direção ao edifício.
A cada passo os corpos do lobo e da Eleanor ficavam mais perto.
O Michael ia agarrado ao Julian, a coxear da perna esquerda, e o William estava a conseguir andar, embora com esgares de dor sempre que o tornozelo poisava no chão.
Apesar de o lobo não dar sinais de vida, todos estavam alerta, armados com uma pedra ou ramo. A maioria de nós estava uma desgraça. Estávamos cheios de arranhões das subidas atabalhoadas aos pinheiros, sangue dos lobos, sujos de terra.
Então, parei a poucos metros do lobo e tive a certeza que ele estava morto.
Um buraco enorme na cabeça e uma mancha vermelha à sua volta eram suficientes.
Tentei não olhei para a Eleanor. Não saberia que era ela se não soubesse já. A cara desfigurada, sangue por todo o lado, marcas de dentes profundas no estômago e garganta. Esperava sinceramente que ela não tivesse sofrido muito.
- O lobo está morto - anunciei. - Podem vir.
Toda a gente relaxou de repente e veio. Ouvi algumas pessoas a vomitar à vista da Eleanor: nem me precisei virar para saber que era a Daiana e o meu irmão.
Agora a pergunta era outra.
- Quem foi que matou o lobo?! - Gritou o Michael.
Ninguém respondeu.
- O lobo não se matou sozinho - insistiu o Michael, apontando para o buraco na sua cabeça. - Quem foi que lhe atirou uma pedra ou assim?
De novo, ninguém se acusou. O Michael desistiu.
- Então... que fazemos? - Murmurou a Anne.
Que fazer?
Tínhamos de tirar o corpo da Eleanor dali. E o do Martin, e pô-los perto da Christina e da Olivia nos confins do bosque, ou na cave com todos os outros. E tínhamos de tomar banho.
E de sair daqui.
O que estava a acontecer? De onde tinham saído estes lobos? Não podiam ter entrado de fora. Estava tão confusa e sentia-me tão miserável que de repente só me apeteceu fechar os olhos e não os voltar a abrir, e esquecer tudo o que acontecera hoje e nos últimos cinco dias.
As pessoas começaram a dirigir-se aos dormitórios para tomar banho. Graças a Deus alguns rapazes tomaram a iniciativa de levar os corpos mortos para o bosque.
- Hey, Lyra - disse de repente o William. - Obrigada. Por me teres salvo.
- Ah... não foi nada, William - respondi. Estava exausta e só queria dormir.
- Igualmente - disse o Josh, então. Fiquei um pouco espantada. Ele era a última pessoa que eu imaginava a agradecer algo. - Atiraste aquele ramo ao lobo. Tipo... Foi fixe.
- Nem estava a pensar nisso quando o fiz - disse, com um sorriso triste - mas de nada.
"O Michael..." Lembrei-me de repente. ELE salvou-ME a vida. Já estava a salvo no topo do pinheiro mas atirou-se de lá abaixo para me salvar... ele podia ter morrido... arriscou tudo por mim.
Procurei-o com o olhar, mas ele já fora embora. Ia falar com ele depois. Agora, só queria um bom duche quente. Tinha sangue dos lobos e da farpa que me acertara na tshirt e nos braços, e só me queria limpar.
O Alex, o Alfie e a Gabby chamaram-me para ir com eles. Virei-me para ir quando de repente senti um cheiro.
Eu já sentira aquele cheiro antes.
Vinha... do lobo.
Aproximei-me, sentindo-me de repente aterrorizada. O lobo estava ali deitado, e de facto estava coberto de sangue, que jorrava do buraco do crânio.
Mas não era só sangue que o cobria e que salpicava a relva.
Era sangue e tinta.
Tinta vermelha.

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