Capítulo XXIII

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- Vamos morrer à sede.
Quatro palavras, tão simples, mas que estavam a ecoar na minha cabeça, como mil microfones.
Não havia nada a fazer. Tínhamos sido vencidos. Desta vez, não havia volta a dar.

***

Quando eu era pequena, eu e o Alex deitávamo-nos na relva e ficávamos a ver as nuvens e a imaginar que formas assumiam. Coelhos, castelos, dragões. Éramos capazes de ficar ali horas, sem nos aborrecermos.
Era nisso que eu estava a pensar, deitada no prado, a olhar para o céu. A regra era estarmos sempre em grupo, mas importava, agora, que estávamos de qualquer maneira condenados?
- Que estás a fazer? - Perguntou-me alguém.
O Alfie aproximou-se de mim.
Era a primeira vez que me falava desde a nossa conversa desastrosa de ontem.
- A ver as nuvens. Queres juntar-te a mim?
Ele sorriu.
- Porque não?
Deitou-se ao meu lado e ficámos em silêncio.
- Olha aquela - murmurou ele.
- A rechonchuda?
- Parece um cavalo.
- Não parece nada...
- Olha ali, a cabeça. E as patas.
- Hum... mais ao menos.
Uma cigarra começou a cantar. Sentia-me extraordinariamente calma, mas uma calma estranha, despropositada para a situação. Quem está calmo quando está a morrer à sede?
- Estava a pensar... - Murmurou o Alfie.
- Desgasta o cérebro. - Comentei.
Ele sorriu.
- Estava a pensar que há tanta coisa que eu gostava de ter feito. Antes de morrer.
- Eu também - suspirei.
- Como?
- Casar. Ir à Europa. Ver a aurora boreal. Descobrir a sequência para os números primos.
O Alfie sorriu da última.
- E tu?
Ele inspirou fundo o cheiro do campo.
- Queria viajar pelo mundo, e ver os países do Oriente. Andar de camelo. Ter aulas de condução. Ter filhos.
Senti um nó na garganta.
Nunca nos ia acontecer nada disto. Nunca íamos viajar, nem ter uma família, ou descobrir a sequência dos números primos. Tudo o que nos restava era hoje e amanhã, mais uma morte lenta e um corpo desidratado...
Tinha o peito a arder de sede, mas tentei ignorar. Em vez disso, voltei a concentrar-me nas nuvens.
- Quem me dera nunca termos vindo para aqui - disse entredentes o Alfie, de repente. - Se só algo tivesse acontecido à ultima da hora... um acidente, um imprevisto. Se só aquele maldito anúncio da publicidade nunca nos tivesse chegado ao correio. Porquê nós, Lyra? Porquê?
- Isso é outra coisa que eu gostava de fazer antes de morrer - acrescentei. - Descobrir quem está por trás disto. E fazê-lo pagar por tudo.
- Já desisti disso há muito tempo. Tudo o que eu queria era sair daqui. Mas aparentemente, não vai acontecer.
Esta conversa estava a deprimir-me. Mas era verdade, não é? Engoli em seco, o que foi mesmo difícil, porque até a saliva me parecia estar a faltar.
- Alfie, antes de batermos todos as botas, quero dizer-te uma coisa.
- Sim.
- Desculpa pelo que disse ontem. A sério. Eu... não queria magoar-te.
O Alfie sorriu. Senti a mão dele apertar a minha.
- Se há alguém que tem de pedir desculpa sou eu, Lyra. Não te posso obrigar a gostar de mim e não tinha o direito de te deixar naquela situação. Independentemente de tudo, não quero passar os últimos dias da minha vida zangado com a minha irmã de reserva.
Foi como se me tirassem um peso dos ombros.
Não disse nada porque não havia nada para dizer. E ficámos ali, deitados, de mãos dadas, a ver as nuvens.

***

- Tive uma ideia.
Demorei uns segundos a perceber que fora o meu irmão a falar.
- Para arranjar água? - Inquiriu a Jayden. - Para nos "animar"?
- Não. Para passarmos como deve de ser os últimos dias.
De cada vez que alguém dizia isto sentia algo dentro de mim arrepiar. Era como se todos estivessem resignados à nossa sentença de morte.
- Diz lá. Também, pior do que estamos... - O Kay encolheu os ombros.
- Vamos todos sentar-nos juntos e conversar. Contar os nossos segredos, as coisas que gostávamos de ter feito, desabafar.
Olhei para o Alex. Ele estava estranhamente sério.
- Estás a brincar ou não?
- Parece-te que estou a brincar...
- Mas... para quê?
- Já que vamos esticar o pernil à sede, mais vale fazer algo de jeito antes.
- E conversar uns com os outros é algo de jeito? - O Michael parecia um pouco incrédulo.
- Concordo com o Alex.
Nem podia acreditar em quem falara. A Rose arqueou uma sobrancelha.
- Ali o loirinho tem razão. Acho que toda a gente aqui está prestes a explodir. E se usássemos este último tempo para deitar cá para fora tudo o que temos andado a guardar estes últimos anos? Coisas que nunca contámos a ninguém?
Não vira a coisa dessa perspetiva. Tentei pensar num segredo que nunca tenha confiado a ninguém, nem mesmo ao Alfie ou ao Alex, mas não me estava a lembrar de nada. Mas, a julgar pela expressões da Rose e do Michael, pelo menos eles os dois pareciam ter algo a dizer.
- Mas... nós só nos conhecemos há uma semana. - Interveio o Alfie. - Sem ofensa, mas não me vou sentir muito à-vontade para vos contar o meu mais tenebroso segredo.
- Alfie, se não contares agora, nunca mais contas - disse a Summer. - Eu por acaso acho uma ótima ideia. Tipo uma consulta psicológica em conjunto! Estamos bem a precisar.
Talvez não fosse assim tão disparatado, se a Summer estava de acordo. Suspirei e disse:
- OK, força.

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