Capítulo XIX

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A Daiana tinha desminado tudo até ao fim da colina, e faltavam 400 metros até termos um caminho livre até uma zona segura. Mas cedo descobrimos que a zona de minas acabara. A partir do limiar de árvores da colina, não havia mais nada.
Ou seja, mais alguns passos e a Daiana teria sobrevivido.
Bati com o punho na árvore. Estava frustrada.
Puramente frustrada.

Comemos o pequeno almoço e depois ficámos a olhar uns para os outros.
Mais um dia pela frente.
O que era sinónimo de mais medo, mais receio e mais stress pelo que nos aguardava.
- Acho que devíamos fazer um minuto de silêncio pela Daiana - disse de repente o Leonard.
Olhámos para ele.
- Ela morreu por nós. - Apressou-se a justificar. - Se não fosse pela Daiana ainda estávamos ali presos.
- Concordo - dei por mim a dizer. - O mínimo que podemos fazer é ficar 60 segundos a pensar nela.
Claro que o Josh tinha algo a dizer.
- Porquê para ela e não para todos os outros? - Bufou. - A tua amiguinha Gabby havia de ficar contente ao saber que a sua melhor amiga está mais arrasada pela morte de uma desconhecida que pela sua.
- Meu, vê se te calas - defendeu-me o Alfie, meio segundo a seguir. - Qual é a tua? Sempre a implicar com todos.
- Quem és tu para me mandar calar?! A miúda é que se ofereceu para se enfiar no meio das bombas. Não tenho a mínima obrigação de lamentar a sua morte mais do que lamentei as dos outros.
Fulminei-o, furiosa. Havia alturas, como aquela, em que sentia realmente que o detestava.
- Se morreres, vamos pensar dessa maneira em relação a ti - disse a Summer.
- Pouco me importa o que vocês pensam de mim. O que me importa é sair daqui vivo, custe o que custar.
- Se todos pensarmos assim, é que não aguentamos mesmo! A união faz a força. Ou nunca ouviste esta expressão?
Ele encolheu os ombros.
- Ouvir, ouvi. Mas acho bem estúpida. Podem formar os vossos grupinhos lamechas e chorar quanto quiserem, mas não contem comigo. - Dito isto levantou-se e foi embora.
Ficámos em silêncio uns segundos, e depois eu também me levantei.
Isto estava a correr mal. Muito mal mesmo. Ao início o problema era só fugirmos daqui ou sobrevivermos aos ataques, mas eu começava a perceber que estávamos a começar a ter outro problema.
Ninguém confiava uns nos outros, e o sentimento de união estava a desaparecer. Notava-se nos olhares, nos gestos. As pessoas estavam assustadas. E o instinto natural parecia ser afastar-se dos outros, em vez de trabalhar em conjunto.
E se eu, o Alfie e o Alex também começássemos a desconfiar entre nós? O pensamento até me arrepiou. Não, isto não estava bem. Fosse qual fosse o plano desta mente misteriosa, estava a resultar.

Tive ainda mais a certeza da minha teoria quando, umas horas depois, estava no dormitório a falar com o Alex e ouvimos gritos.
- Larga!! É meu!!
- Isso querias tu!
- Larga! LARGA!
Corremos lá para fora, já à espera dos piores cenários. Buracos de lava, tiroteio, invasão de tigres. Mas a cena era bem mais mundana.
A Rachel e a Kristen estavam engalfinhadas numa luta por uma bolacha de água e sal. Estavam a puxar os cabelos e coisas do género, mas podia correr pior se alguém não as separasse.
- Hey!! Miúdas! - Gritou o Michael. Ele agarrou a Rachel e o meu irmão apressou-se a agarrar a Kristen. - Que se passa aqui?!
- A bolacha é minha! - Rosnou a Rachel. - Estou esfomeada, e ela não ma dá!
- Mentirosa! Tenho tanta fome quanto tu! E era minha! - Retorquiu a Kristen.
Se o Michael e o Alex não fossem fortes o suficiente para as segurar, elas ter-se-iam atirado de novo uma à outra
- Oh, pelamordedeus! - Disse a Mel, irritada. - Que bebés. Porque é que não partem o raio da bolacha ao meio?
Nenhuma das duas respondeu. Em vez disso, lançaram-se olhares irados.
Percebi de repente o que me estava a incomodar.
Elas estavam a agir como animais.
Este sítio estava a dar cabo de nós.

O resto do dia passou da mesma maneira. O episódio das minas, a morte da Daiana, o facto de termos de andar em biquinhos dos pés pelo caminho desminado de cada vez que queríamos atravessar o prado, estava a levar-nos à loucura, pelo menos a mim.
Aliás, começavam-se a notar coisas óbvias de que estávamos todos a sucumbir ao ambiente.
O meu irmão não dissera uma única piadinha o dia todo, o que era muito estranho. O Michael estava com umas olheiras enormes. A Maya e a Miranda estavam ainda mais caladas que o costume e estavam sempre agarradas uma à outra. A maioria das pessoas estava magra e pálida. Até o rechonchudo William parecia ter perdido algum peso.
Ao longo da tarde, houve mais duas lutas. O motivo era sempre o mesmo: comida. As pessoas estavam com fome, e pareciam estar a voltar à Pré-História, comportando-se como primitivos.
Lembrei-me vagamente do Lorde das Moscas, mas rapidamente tentei esquecer. Não podíamos acabar como os miúdos dessa história.
Eram mais ao menos seis e eu estava a atravessar os dormitórios um a um, à procura de um que estivesse livre. Sim, lembrava-me das regras: nunca andar sozinha, estar sempre em grupo, bla-bla. Mas eu precisava de tomar um duche para aliviar a cabeça e a Rose estava, como sempre, a ocupar a nossa casa de banho. Tinha toalha e champô, mas a Daiana usara o meu amaciador como objeto para explodir as minas, por isso estava a considerar em pedir um emprestado.
O sol começava a pôr-se, e vi um bando de pássaros cortar o céu. Se pelo menos nós também conseguíssemos voar... saíamos dali num instante.
E foi então que ouvi vozes.
A minha primeira reação foi entrar em pânico.
A segunda foi curiosidade.
Vinham das traseiras dos dormitórios, ou seja, das árvores. Fiquei ali, parada, numa luta entre o medo e a vontade de ir ver quem era.
Se fosse o assassino e me visse sozinha, eu não tinha hipóteses.
Mas ele não ia estar a falar sozinho, certo? A curiosidade venceu. Pé ante pé, passei pelo último dormitório e espreitei.
Eram quatro pessoas, três de costas para mim e uma de frente, mas mesmo assim demorei três segundos a reconhecê-los.
- Oh, William. Não sejas assim. - Disse o Josh, abanando a cabeça. - Podias partilhar esse pedaço de carne connosco.
Ele, o Julian e o Tom estavam a poucos metros do William, que parecia aterrorizado. Estava contra uma árvore, agarrado ao pedaço de carne de lobo que era provavelmente o seu jantar.
- P-partilhar? - Gaguejou ele. - Vocês têm o v-vosso...
- Mas ainda temos fome - o Julian avançou. Era uns bons centímetros mais alto que o William e este encolheu-se ao vê-lo aproximar-se. - E tu vais ser simpático e ceder-nos a tua comida.
O William estava apavorado, e via-se até mesmo da distância onde eu estava que ele estava a tremer.
- Então? Não temos a noite toda. Dá-nos a carne.
- M-m-mas o que é que eu como...
- Não comes. Essa banha toda que tu tens dá para te aguentares dois meses. - Sorriu o Tom. O Josh riu-se.
O William estava a olhar-se em volta, como à procura de uma via de fuga, mas ele não tinha muitas hipóteses. O Tom, o Julian e o Josh eram os três bem mais rápidos que ele, e também, ele podia correr para onde?
O Josh deve ter-se apercebido disso e disse:
- Nem tentes fugir. Se nos deres a comida, não te acontece nada. Vá lá, Gordo, dá-me o pedaço de car...
- Vai-te lixar, Josh!
Não tinha sido o William a dizer isso.
Quando os três se viraram, surpreendidos, na minha direção, percebi de repente que tinha sido eu.
- Claro que tinhas de ser tu - o Josh revirou os olhos. - Tens sempre de pôr o nariz onde não és chamada? Dá meia volta e desanda.
- Deixem o William. Porque é que ele vos haveria de dar o seu jantar?
O Julian riu-se.
- Estamos com fome.
- Ele também!
- Olha lá, armaste-te em defensora dos direitos dos porcos ou uma cena assim? Desampara a loja, antes que perca a paciência contigo - cortou o Josh.
Olhei para ele furiosa.
- Mas tu achas que mandas em mim?! Achas mesmo que vos vou deixar aqui a maltratar o William?! Que mal é que eles vos fez?
- EU é que te vou fazer mal a TI se não bazares - rosnou o Josh. - É o último aviso. Achas sinceramente que és a rainha disto, não achas?
- E lá porque tens cabelo loiro e estes dois palhaços atrás de ti, não quer dizer que possas fazer dos outros o que quiseres - respondi.
Foi a gota de água para o Josh. De repente ele agarrou-me o braço e empurrou-me contra o tronco da árvore.
- Au! - Sibilei, quando ele me torceu o braço atrás das costas e bati com a bochecha no tronco áspero.
- Estou farto de ti, sabias, Lyra? - Disse ele, ao meu ouvido. - Podes achar que és melhor do que nós, mas não és.
- Se há alguém aqui que se acha melhor és tu... AU - o Josh torceu-me ainda mais o braço. - Larga-me, seu psicopata!!
- Já não me pareces assim tão corajosa agora que o maninho não está aqui para te proteger. - Sorriu o Josh. Largou-me por fim, e foi ter de novo com o Julian e o Tom.
Estava com o braço super dorido, mas tentei esconder a dor. Não ia embora até deixarem o William em paz.
- Tenho um acordo para vos propor - disse de repente. - Se deixarem ir o William, dou-vos o meu pedaço de carne.
Os três olharam uns para os outros.
- Que dizes? - Perguntou o Julian. - Deixamos o Banhas por hoje?
O Josh pareceu refletir. Por fim, encolheu os ombros.
- Nem estava com muita fome. Isto foi só mesmo para passar o tempo. - Virou-se para o William. - Escapaste desta. Agradece ali à intrometida. - Virou-se para mim. - As tuas atitudes heróicas estão-me a irritar. Desta passa, mas metes-te de novo aos meus pés e vou fazer mais que torcer-te o braço.
Não respondi enquanto o Tom, o Julian e o Josh passavam por mim e iam embora. Tinha o coração a bater super depressa e uma mistura de raiva e medo pelo Josh. Era quase impossível pensar que, nem há uns dias, ele me salvara a vida do ataque do lobo.
O Julian e o Josh afastaram-se, e notei que o Tom ficou um pouco para trás. Depois, quando eles fizeram a curva, virou-se.
Aconteceu rápido. De repente ele agarrou-me ambos os braços e prendeu-me contra o pinheiro. Foi tão rápido que de repente vi a cara dele a centímetros da minha e ele disse:
- O Josh está farto de ti. Se fosse a ti, não me metia muito com ele.
A reação foi tão inesperada que embatuquei. Olhei para o Tom. Os olhos azuis, os cabelos pretos, os dentes brilhantes e perfeitamente alinhados. Era sem dúvida o rapaz mais bonito do Campo inteiro, mas havia algo de estranho naquela sua maneira de ser, algo que não me agradava nada.
- O que é que tu queres? - Perguntei, tentando soltar-me.
- Nada. Só avisar-te. Sabes, o Josh esteve a pensar naquilo que tu disseste. Como é que é... a união faz a força? Pois bem, nós os três unimo-nos.
- Contra nós?! O que vocês estavam a fazer ao William era... - Nem havia palavras para descrever.
- O Josh está convencido que isto é uma espécie de teste, sabes - acrescentou o Tom.
- Um... teste?
- Sim. Uma prova, para ver quem são os melhores, os sobreviventes. Os que vão morrendo são os mais fracos. E os poucos que restarem são os que merecem permanecer vivos.
A teoria era tão absurda que me apeteceu rir. Mas não ri, porque não era uma situação engraçada.
- Então, vocês vão começar a agir como rufias, intimidar e roubar comida para vencer este "jogo", serem os sobreviventes e irem embora?! Têm noção da estupidez que isso é?!
- Não é questão de vencer, Lyra. É questão de SOBREVIVER. - O Tom riu. - E está-me a parecer que o pequeno trio que formámos tem boas hipóteses.
- Tom, isto não é um jogo. NÓS somos as cobaias, o verdadeiro inimigo é este psicopata que nos anda a virar uns contra os outros!!
O Tom sorriu.
- E de qualquer maneira, que aptidões tão fantásticas vocês três têm? - Acrescentei.
- O Josh tem força, e consegue o que quer, e não tem remorsos nem qualquer consciência. O Julian é rápido e esperto, bem mais do que parece. Eu... - O Tom sorriu, exibindo os dentes. - A beleza pode dar muitas vantagens.
- Então usas a beleza para conseguires o que queres?
- Basicamente. Com a Rose funciona muito bem. E a Maya. Ficou toda corada, só de eu lhe passar o braço na cintura. E deu-me logo a sua comida. Algumas pessoas são tão fáceis de manipular.
Pensei na Maya, com borbulhas e aparelho cor de rosa. Não devia estar habituada a receber atenção. Não admirava que tivesse entrado em êxtase ao sentir-se admirada pelo Tom, principalmente com aquela beleza estonteante.
- Vocês metem nojo.
- Não digas isso. Vais-me dizer que escapas ao meu encanto... - Ao dizer isto, o Tom aproximou-se ainda mais, até ficar a meio milímetro da minha cara. Os seus olhos azuis turquesa eram hipnotizantes e desviei a cara, sentindo-me um pouco assustada.
- Não vou fazer o que queres só porque tens uma cara bonita - respondi. - Pode funcionar com a Rose e a Maya, mas comigo não.
- Veremos - respondeu ele. - Não és de deitar fora, sabes? Podes ser irritante, mas não és nada feia. Nada feia mesmo...
O Tom tentou beijar-me o pescoço, mas foi a gota de água. Com a perna, dei-lhe um pontapé. Ele parou e sibilou de dor.
- Afasta-te - ordenei. - Não quero nada contigo e com os teus amiguinhos.
- Agressiva - riu-se ele, obviamente tentando disfarçar a dor. - Mesmo na natureza as coisas passam-se assim. O melhor, o mais forte, o mais bem-preparado, sobrevive, e o resto morre. E vou fazer de tudo para ser aquele sobrevivente.
- Fazer de tudo? Inclusive matar?
O Tom ficou em silêncio, uns instantes. Atrás da sua aparência de Casanova havia uma mente muito mais calculista do que eu alguma vez imaginara.
- Talvez. - Retorquiu. Largou-me por fim, e eu suspirei de alívio ao sentir-me solta de novo. - Só para te dizer. Se quiserem juntar-se a nós, tu e o Michael são bem-vindos.
- Podes esquecer, Tom. O suposto é estarmos juntos, não lutarmos.
- Sabes lá tu, Lyra. Sabes lá tu - e com isto virou-se e foi ter com o Julian e o Josh.
Eu mal podia acreditar no que acabara de acontecer. Estávamos a dividir-nos perigosamente. Aquela estúpida "aliança" era a prova disso. Seria este mais um dos planos do assassino, ou apenas uma consequência?
Não sabia. Estava farta de pensar. Virei-me para o William. Ele já se levantara e correu para mim.
- Estás bem? Obrigada por me salvares. Já é a segunda vez que o fazes.
O meu cérebro entorpecido demorou alguns segundos a perceber que ele se estava a referir aos lobos.
- Ah... não foi nada. Esquece isso. E tem cuidado. Se fosse a ti, afastava-me deles.
- Vou tentar. A sério, obrigada - e dito isto ele também foi embora.
As palavras do Tom ecoavam na minha cabeça. "Sobrevive o melhor..." Seria isso mesmo? Seria isto um jogo de sobrevivência, um jogo sádico tipo os Hunger Games ou assim? Abanei a cabeça. O que quer que fosse, não estava a gostar do rumo que as coisas estavam a tomar.
Apercebi-me de repente que já estava a escurecer e eu estava sozinha, no silêncio, no meio das árvores. Arrepiei-me, não sei se pelo medo ou pela súbita rajada de vento, e praticamente corri dali para fora, para os dormitórios.
Talvez isto fosse só uma crise de adolescência que, adicionada ao stress e aos horrores que estávamos a viver, desencadeara aquela reação naqueles três. Talvez passe depressa.
E daí talcez não.
- Michael - disse, entrando no dormitório. - Preciso de falar contigo.

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