É hoje. O velório dos meus pais, e você deve estar se perguntando o porquê demorou tanto. É simples, eu não sei. Fiquei sabendo ontem a noite já estava na cama quando Margot entrou no quarto e me avisou. Não consegui dormir e chorei algumas horas durante a noite, pareço um zumbi agora. Acho que vocês sabem que será um velório rápido e com os caixões fechados, já que eles foram carbonizados pelo incêndio no carro depois do capotamento. Eu ainda não decidi se quero cremá-los já que parece ser cruel, analisando que eles morreram carbonizados. Isso me dói muito, porém quero jogar as cinzas deles em um lugar tranquilo onde eles possam enfim descansar. Me olho no espelho, rosto inchado e grandes olheiras roxas. O vestido totalmente preto sem detalhes que uso faz jus ao local fúnebre. Pego os óculos escuros na cômoda do quarto e a bolsa também preta em cima da cama, saindo do quarto e fechando a porta do mesmo. Olho para a porta dupla no fim do corredor, como se meus pais estivessem ali e eu os esperassem sair para irem comigo à algum lugar. Sou mesmo idiota, como meus pais iriam comigo no próprio velório deles? Começo a chorar novamente e sigo em direção ao quarto deles. Abro as portas com raiva, então mesmo sem ver estou quebrando tudo. Vejo eles saírem do closet.
- VOCÊS ME DEIXARAM AQUI! OLHA A MERDA QUE FIZERAM!
- Você não é nossa filha Melanie! Aceite isso, pare de sofrer atoa, querida. - A voz de Stella ecoa na minha cabeça.
Jogo tudo o que vejo neles, eu os odeio. Não tenho consciência do que faço, apenas faço. Destruo tudo no quarto, rasgo roupas e me jogo na cama, rasgando seus lençóis. Olho na direção deles e Stella gargalha como um demônio, Joseph me olha com pena. Nunca senti tanto ódio e repulsa. Vejo o roupão vermelho de Stella na poltrona me levanto e o rasgo gritando. Estou tonta e não paro de gritar um segundo se quer. A imagem de meus pais é nítida na minha frente, mesmo que embaçada pelas lágrimas.
-IDIOTAS, VOCÊS SÃO MONSTROS, OLHA O QUE FIZERAM COMIGO. EU ODEIO VOCÊS.
Arremesso contra eles as coisas que derrubei no chão. Tenho uma tontura forte como a que tive dias atrás e sinto a parede fria nas costas. Caio no chão ainda chorando.
- É incrível como você se rebaixa a níveis selvagens. Nunca seria minha filha, bastarda. - Stella me massacra com suas palavras.
- Nunca pensei que nos mataria Melanie, jogou fora tudo o que eu construí. - Agora é Joseph quem diz, isso não pode ser verdade.
- VOCÊ ESTÁ MORTO, VOCÊS ESTÃO MORTOS. SAIAM DAQUI! - Grito, mas ele gargalham da minha imagem ridícula.
A visão turva dos empregados invade minha mente, uma pessoa me pega no colo e a soco me esperniando nos braços dela. Grito ainda mais alto. Olho para o lado e ainda vejo meus pais, mas a imagem está mais apagada com poucas cores e um pouco borrada, mas os vejo sorrindo diabolicamente para mim. Retiro meus sapatos e jogo neles.
-MONSTROS, VOCÊS SÃO UNS MONSTROS!
Os braços me apertam, choro aninhada neles por tempo indeterminado.
-Tirem eles daqui, TIREM ELES DAQUI! EU ODEIO ELES.
-Eles não estão aqui, não mais, já foram embora, só eu estou aqui, pequena.
Adormeço.Sinto muita dor de cabeça e minha garganta está seca, os tecidos macios embaixo de mim, braços me rodeiam e o perfume amadeirado aos poucos vai me deixando entorpecida. Abro os olhos, e vejo que estou no meu quarto. Me viro vendo Peter me olhar, ele me dá um beijo na testa e me aperta contra seu peito.
- O que aconteceu? - Pergunto.
- Não vamos falar disso agora ok? Só fica tranquila.
- Ok. - Digo e me sento, olho o vestido preto e me lembro exatamente de tudo o que aconteceu, tampo o rosto com as mãos, sentindo o coração ficar apertadinho. Peter se senta ao meu lado, me olhando.
- Hey, está tudo bem ok? Já passou. Está tudo bem. Eu estou aqui com você.
- Eles não estão mortos, eu vi, eu sei que vi, eles falaram comigo Peter, eu os vi. - Digo, soluços escapam involuntariamente.
- Melanie, você não viu ninguém, não entrou nem saiu ninguém daquele quarto, nem na casa. Eles estão mortos e estamos atrasados para o funeral. - Peter diz. Mas eu tenho certeza do que vi e ouvi. Eu não quero ir ao funeral, eles não são os meus pais e não estão mortos.
- Eles não estão mortos, eu sei o que vi Peter, acredite em mim. - Digo choramingando.
- Ok, agora vem, está na hora. - Peter se levanta e seu terno preto está amassado. Ele me estende a mão e a seguro, me levantando. Passo a mão pelo vestido e calço uma sapatilha que está perto da cama. Abraço ele e saímos do quarto.Estou aqui sentada em uma dessas cadeiras horríveis e desconfortáveis, no salão onde está o acontecendo o velório. Estou no meio das duas caixas de madeira escura, os detalhes parecem ser de ouro, o que não duvido muito. Francamente, quem é que liga pra ouro embaixo da terra? Só se for minerador. Sério. Isso é ridículo. Não sei porque me colocaram no meio deles, eu não sou filha deles, vou ir no necrotério para pegar alguma amostra de DNA deles e fazer um teste, afinal sou muito parecida com eles. Olhos da Stella, cabelos e rosto de Joseph, a boca me lembra a minha avó Teodora, mãe da minha suposta mãe. Acho que Peet percebe meu desconforto e olha para mim com pena, retribuo com um olhar do tipo "Me tire daqui por favor!". Ele entende e se levanta, vindo em minha direção. Eu o abraço e saímos do salão que a propósito tem muita gente que não faço idéia de quem seja, foram poucas que não me cumprimentaram e me ofereceram seus pêsames. Eu ein, provavelmente são da empresa, ou amigos, não faço idéia realmente. Todos me olham com tristeza no olhar e alguns transmitem curiosidade no semblante. Muitos parentes aqui, muitos mesmo, faz muitos anos que não os vejo e é estranho vê-los em um velório duplo. Ao chegar na porta do grande salão olho para trás, e provavelmente centenas de olhares estão sobre mim, não consigo contar. As lágrimas estão chegando, eu me odeio por isso. Me odeio por estar chorando, afinal eles sempre foram os meus pais e apesar de tudo, eu os amava e ainda os amo. Inúteis. Inúteis mil vezes inúteis, que tipo de pessoa faz isso? Quer dizer, se finge de morto e fica assombrando sua possível filha. As lágrimas escorrem e os soluços escapam, então tenho a certeza de que 99,9% de todo o salão me olha, os 00,1% é um garotinho muito lindo que está destruindo uma coroa de flores, será que ele pode destruir os caixões também? Não seria má ideia. Passo o olhar por todo o salão novamente, os braços de Peter me soltam, então eu o olho e saio do salão. Preciso caminhar e não ficar no meio de dois corpos mortos e queimados. Inúteis.
Olho de relance para Peter que me segue, faço um sinal com a mão e ele me deixa. Sigo por ai sem rumo algum.
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Celeste
Ficção AdolescenteE se a vida lhe apunhalar por todas as direções? E se ela lhe derrubar e te machucar ao ponto de você não se levantar? Essas foram as 2 perguntas que me fiz durante algum tempo, até eu mesma sofrer as apunhaladas e me machucar. Talvez o empurrã...