Era manhã do dia seguinte e Jullie mantinha um sorriso misterioso no rosto.
Eu estava escovando os dentes no meu banheiro, mas ainda tinha uma perfeita visão da minha melhor amiga através do espelho. E eu podia ver o sorriso dela.
Era o meio sorriso que ela dava quando estava feliz. Quando alguma coisa muito especial havia acontecido e ela mal podia se segurar de felicidade.
Eu sabia o que tinha acontecido.
Jullie nem desconfiava. Mas eles estavam perto do meu quarto, como esperavam que eu não ouvisse? Mesmo sendo quase meia-noite, eu andava tendo alguns momentos de insônia devido ao turbilhão em que me encontrava, então, não era realmente estranho que eu estivesse acordada.
Ela e Douglas não deviam estar ali há mais de cinco minutos. Eu tinha sentido quando minha amiga se levantou da cama e até ouvi quando esbarrou em meu irmão na porta. Então, eles desceram e se passaram quase dez minutos até que suas vozes voltassem para mais perto e os dois se instalassem nos degraus da escada.
O som era de murmúrios, por isso não consegui ouvir boa parte da conversa – não que eu estivesse tentando. Mas o tom de voz deles começou a ficar mais sério até minha curiosidade vencer e eu me erguer da cama para sentar encostada à parede ao lado da porta.
– Eu sei que eu sou meio idiota, às vezes – admitiu Douglas, como se tivesse confirmando algo dito antes.
– Só um pouquinho. – Jullie soltou uma risada baixa.
– Mas, sei lá, não é por mal, sabe? É o meu jeito. Só que eu sinto que as pessoas ficam com uma impressão errada de mim. Como se eu não me importasse, não tivesse coração.
– Você também não faz muita coisa para mudar isso, né?
– Eu sei. É que eu tenho medo de baixar a guarda.
– Douglas... Nem todo mundo vai partir seu coração.
– É. Mas e se eu partir?
– E por que você faria isso?
– Não sei. O meu pai partiu o da minha mãe. O Davi partiu o da Anna. Por que eu seria diferente?
Não consegui evitar ficar surpresa com o que ele disse. Douglas tinha se esforçado tanto para impedir que alguém penetrasse a armadura que ele mesmo construiu a sua volta que eu estranhava vê-lo tão vulnerável. Mais ainda ao vê-lo admitir que esse escudo tinha sido uma consequência direta das decepções que presenciou em sua vida. Nunca tinha parado para pensar que a ausência do nosso pai podia tê-lo afetado tanto quanto afetou a mim. No entanto, é coerente que isso tivesse acontecido: Douglas estava no auge de sua adolescência quando tudo aconteceu. Ele estava descobrindo quem era e moldando sua personalidade. Como o abandono de um pai poderia não marcá-lo? Como poderia não levá-lo a temer a possibilidade de partir o coração de quem ele amava, da mesma forma que o pai fez?
– Deixa de besteira – Jullie respondeu. – Cada um é cada um. E se você tem essa percepção de que é errado, já é um ponto à frente de muitos caras. – Ouvi uma movimentação e supus que os dois estivessem se abraçando. – Não dá pra gente acreditar que nunca vai ser decepcionado ou decepcionar alguém. Faz parte da vida. E viver com medo disso... É praticamente ter medo de viver e de ser feliz, né?
– É...
Eles ficaram por quase um minuto em silêncio e eu estava quase me levantando, quando Jullie resolveu se manifestar.
– Bem, já tá ficando tarde, melhor eu ir dormir.
Quando ouvi o farfalhar na escada, corri até minha cama tentando não fazer barulho. Eles pararam à porta do meu quarto, o que me permitiu ouvi-los ainda assim.
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Além da amizade (COMPLETO)
Teen FictionAquele poderia ser um dia como outro qualquer - mas, tão inusitado quanto uma frente fria no verão carioca, aquele sábado estava longe de ser banal. É por causa do seu rumo inesperado que Anna Schwartz se vê entrar em uma nova (e não tão boa) fase d...