Capítulo II - ZECA

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Após um longo dia de trabalho – se é que podemos chamar assim – era ótimo voltar pra casa e poder deitar na minha cama. Com casa, refiro-me a casa abandonada que havíamos invadido há anos. E com cama, ao monte de estopa velha que servia de colchão. Não era o melhor que havia no mundo, mas era o melhor que podíamos ter e isso bastava.

Malu ainda tentava se adaptar a essa nova vida, mas eu não a culpava. Eu também já tinha passado por tudo isso e sabia o quão ruim pode ser. Ainda mais depois que tivemos que arrancar o localizador que ela possuía na nuca no meio do caminho e sem a menor condição de higiene.

Tentei pegar no sono, já que eu sabia que em breve a Iolanda me chamaria para vigiar o grupo. Revezamos para nunca deixar o grupo desprotegido. Eu temia muito por todos eles. Mas naquela noite o sono não quis se aproximar de mim. Minha cabeça não parava e meus pensamentos vinham desenfreados. Era como voltar no tempo.

Eu sabia que era uma responsabilidade enorme trazer mais uma pessoa para o nosso grupo. Mal tínhamos condições de manter a nós mesmos. Ainda mais após alguns integrantes votarem contra. Mas eu não podia deixar a Malu naquele lugar. Eu nunca quebro uma promessa.

– Zeca – chamou Iolanda. – É a sua vez.

– Tudo bem – disse. – Pode descansar.

Sentei-me na cadeira reservada ao sentinela da hora. Dali eu podia ver todos dormindo e avisá-los o mais rápido possível caso alguma coisa acontecesse. Notei que havia uma tensão sobre eles. Era normal quando acrescíamos gente ao grupo.

– Quer descansar? - perguntou Malu, aproximando-se de mim. – Eu estou sem sono. Posso ficar aqui se quiser.

– Eu também estou sem sono – respondi.

Ela sentou-se ao meu lado, no chão. Ficamos em silêncio por bastante tempo. Vi ela levar a mão ao machucado, onde estava o chip.

– Está doendo? – perguntei.

– Um pouco – ela respondeu.

Ela não tinha mudado nada. Ganhou uns bons centímetros e o cabelo reduzira drasticamente, mas fora isso continuava a velha Malu de sempre.

– Quem eu sou, Zeca? – perguntou ela.

Respirei fundo. Era difícil falar sobre isso.

- Nós não temos família – comecei, medindo as palavras. – Quer dizer, todo mundo tem família. Isso é óbvio. Mas por alguma razão desconhecida, nossas famílias não nos quiseram. Por isso, nós crescemos em um orfanato. Nós dois chegamos juntos lá. Pelo menos é o que sempre nos disseram, porque eu não lembro de nenhum acontecimento da minha vida antes disso. E nós éramos bem unidos, como irmãos.

Tentei soar despretensioso, como se aquilo não fosse nada demais. Eu não queria que ela ficasse chocada com aquilo.

– E o que aconteceu depois? - continuou ela.

– Nós éramos um peso para o governo. Éramos cerca de trezentas crianças sem nenhum futuro nem certeza de retorno financeiro para eles. Então eles resolveram lucrar com a nossa existência nos vendendo para um laboratório. No começo eu não sabia exatamente o que isso significava, mas eu tinha só oito anos. Só fui entender direito, quando aquele monte de médicos e enfermeiros entraram no orfanato e nos levaram a força, dentro de carros que mais pareciam camburões, para um hospital grande.

Ela parecia hipnotizada pela minha história. Talvez estivesse pensando se eu estava falando a verdade, ou se eu era o maior mentiroso do mundo.

– Você estava apavorada e não parava de chorar – continuei. – E eu nem te culpo, porque eu também estava morrendo de medo do que poderia acontecer com a gente. Eu prometi pra você que eu não ia deixar nada de mal lhe acontecer, mas logo fomos separados e eu nunca mais soube nada a seu respeito.

A Segunda Geração - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora