Capítulo XVII - MALU

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Eu não fazia a menor ideia do quão forte eu era até ter que praticamente carregar o Zeca escada acima, até sairmos pelo bueiro. E como ele era pesado! Aquele corpo esguio escondia mais peso do que eu podia imaginar.

Esse bueiro não dava pra rua como os outros, mas dava para uma estação de tratamento que ficava dentro do hospital. Eles eram éticos o suficiente para não descartar na rede de esgoto todos os produtos químicos que usavam. Só esqueciam dessa tal ética quando se tratava de fazer experimentos genéticos em crianças órfãs.

A estação era bem iluminada, e precisei me adaptar a toda essa claridade, já que dentro da galeria estava escuro demais. Só então consegui ver como o ombro do Zeca estava inchado pra valer. A tala cobria boa parte, mas ainda assim era possível enxergar.

- Você também se machucou – disse ele.

A princípio não entendi direito do que ele estava falando. Então lembrei que durante a queda, eu tinha ganhado um corte na testa. Na hora doeu bastante, mas agora não doía mais.

- Está muito feio? - perguntei, tocando no ferimento.

- Está melhor que o meu ombro. - riu ele

- Está doendo?

Já devia ser a décima vez que eu repetia essa mesma pergunta. E embora a aparência da sua lesão não fosse nada aninadora, ele parecia não se abalar. Apenas negou com um movimento de cabeça.

Antes de atravessar pra dentro da estação, eu não consegui ouvir nenhum pensamento, então estava óbvio que a barra estava limpa aqui dentro.

- E agora? - indaguei

- Agora vamos esperar o Tonho chegar – respondeu ele, fazendo careta de dor.

Estava muito frio dentro da estação. Principalmente porque havia água correndo o tempo todo, e sempre respingava uma gota ou outra. Ainda mais, porque eu estava com a parte de baixo da minha camiseta rasgada, o que deixava uma parte da minha barriga a mostra.

Sentamos no chão e permanecemos ali em silêncio, quebrado vez ou outra por algum gemido do Zeca. O Tonho estava demorando muito para chegar e o frio estava piorando. Abracei minhas pernas, no intuito de me manter aquecida. Mas meus pelos do corpo já estavam tão eriçados que chegavam a doer.

- Você está com frio? - perguntou ele

- Aham – respondi, sentindo meus lábios inferiores tremendo.

Não tinha certeza se eu tremia tanto de frio ou se era medo mesmo, mas de repente eu não conseguia parar de me chacoalhar.

Sem que eu pedisse, ele me abraçou com o braço que não estava machucado – e que coincidentemente era o braço defeituoso que ele evitava tocar nas pessoas. Não me fiz de rogada e tratei de mantê-lo o mais perto possível, pois apesar de tudo ele estava bem quentinho.

Aos poucos fui apoiando a cabeça no ombro dele e o frio foi meio que passando. Não por completo, é claro, já que aquela água maldita ainda respingava em mim. Mas a situação já estava consideravelmente melhor.

Levei um susto enorme quando ouvi a porta abrindo. Eu estava quase cochilando e não tive tempo de ouvir quem estava do outro lado. Mesmo sabendo que a enfermeira F era na verdade o Tonho, ainda me senti desconfortável.

- Desculpa a demora – pediu ele, ou ela. Ainda fico em dúvida – Dois otários tentaram me barrar na guarita. Pensei que fossem me descobrir, mas ter peitos tem suas vantagens – ele segurava os próprios peitos de forma desajeitada.

Depois de rir sozinho por um tempo, ele finalmente reparou em nós dois.

- Caramba, Zeca! - exclamou – O que houve com o seu ombro? E com a sua testa, Malu?

- Uma droga de um buraco – respondi, instintivamente passando a mão na testa.

O corte já tinha feito uma casca e quando eu tocava nele, doía um pouco. Nada comparado com o ombro do Zeca.

- Vamos então? - indagou ele, jogando uma bolsa pra mim.

Ali dentro estavam os uniformes dos internos que eu e o Zeca deveríamos usar e a máquina para raspar nossos cabelos. Senti um pouco de pena, pois meu cabelo já estava bem grandinho.

- Não sei se os tamanhos correspondem – apressou-se em se explicar o Tonho – Mas foi o que eu encontrei.

- Tá ótimo – respondi.

Estávamos no meio de uma estação de tratamento de esgoto. É lógico que ali não tinha um lugar adequado para que eu me trocasse, então decidi que estávamos em uma situação bem atípica e eles – nem eu – não morreriam se me vissem de calcinha uma única vez. Tratei logo de tirar minha roupa.

- Isso aqui vai ser nosso segredinho – disse a eles, enquanto tirava a calça.

Eles não responderam. Apenas ficaram chocados demais para dizer qualquer coisa.

- Tem alguma coisa que eu possa usar pra limpar esse sangue no meu rosto? - perguntei, tentando evitar todo o constrangimento que toda essa cena causara aos meninos.

- Tem... água... bolsa – respondeu o Tonho, sem tirar os olhos da minha roupa velha, jogada no chão.

- Obrigada - respondi

Peguei uma garrafa de água na bolsa, molhei minha antiga camiseta e limpei o meu rosto, que estava bem sujo.

- Estou limpa? - perguntei pro Zeca

Mas ao invés de responder, ele ainda me olhava com cara de espanto. Como se eu fosse uma aberração.

- Você vai ficar me olhando com cara de bocó por muito tempo? - indaguei perplexa

- Não – respondeu ele, muito corado.

Admito que achei graça no jeito como eles agiram. Apesar de serem mais velhos que eu, pareciam duas crianças.

O Zeca nunca conseguiria trocar de roupas com aquele ombro machucado, por isso tratei logo de pegar seu uniforme de dentro da bolsa.

- O que você pensa que está fazendo? - perguntou ele.

- Vou te ajudar a colocar essa roupa, oras! - respondi, com cara de óbvia – Ou você pensa que consegue se vestir sozinho?

- O Tonho me ajuda, não é?

- Eu!? - indagou ele, arregalado – Me inclua fora dessa, cara! Não pense que depois de ver uma garota seminua, com todo o respeito, Malu, eu vou chegar perto de um marmanjo de cueca!

- Ah... Muito obrigado mesmo, Tonho – bufou ele sarcástico.

E lá fomos nós. Com muito cuidado o ajudei a tirar a camiseta, e devo dizer que tive uma surpresa. Quer dizer, agora eu entendi todo o trabalho que eu tive ao carregá-lo escada acima. Ele era forte! Não tão forte quanto o Tonho, mas consideravelmente forte. Senti meu rosto corar um pouco, mas não tenho certeza se ele notou, já que ele estava evitando olhar pra mim.

Quando fiz menção de tirar sua calça, a situação ficou tensa. Eu acho que não tinha pensado direito na gravidade do que eu estava prestes a fazer. Eu estava abaixada, com a cabeça na altura da sua cintura, e isso era bastante constrangedor. Fiz o possível para evitar tocar a sua pele, mas fracassei. Por isso, tentei acabar logo com aquilo.

Quando ele finalmente estava vestido, afastei-me dele com mais pressa do que eu queria, mas isso não evitou todo tipo de piadinha do Tonho. E logo do Tonho que nem era o cara mais piadista do mundo. Imagina só se fosse o Tião no lugar dele!

Por fim, o Tonho nos ajudou a raspar nossas cabeças e estávamos parecendo dois típicos internos.

- Tudo pronto. Vamos nessa? - perguntei, tentando por fim nesse momento vergonhoso das nossas vidas.

A Segunda Geração - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora