Minha professora de história dizia que ler é abrir os horizontes e dar asas a alma, ainda acredito nela. Cada vez que abro um livro sinto como se minha alma criasse asas e voasse pra bem longe desse lugar tenebroso. Sumir do internato Chermont, ainda que por algumas horas e espiritualmente me trazia a paz que precisava pra não surtar ali. Odiava aquele mausoléu com todas as minhas forças, odiava aquelas pessoas e principalmente, odiava meus pais por terem me colocado ali. Queria eu ter a opção de me livrar de alguém que me decepcionou e nunca mais ter que vê-lo.
Levantei e percorri o corredor de livros da biblioteca, procurava um clássico. Madame Bovary havia sido meu escolhido, tinha ouvido algumas histórias sobre Emma e suas aventuras, acreditava fielmente que o exemplar me ajudaria a esquecer da cena perturbadora de mais cedo.
Após ter sua mão espedaçada pelo triturador Serena fora levada a enfermaria, sem muito sucesso foi necessário chamar ajuda do hospital local, pra aonde a menina foi levada. Todos tinham esperanças de que ela voltasse curada e saudável.
Puxei um exemplar de Madame Bovary da estante e o encarei, o livro estava tão empoeirado que mal podia enxergar o título. Visivelmente não era aberto há anos, diria até décadas ao constatar as folhas bege e em parte grudadas umas as outras, lembrando o diário de Heloise. Levei o exemplar até a mesa ao fundo da biblioteca, me sentei escorando na parede de papel verde colonial e descansei o corpo. Sacudi o livro tentando tirar o máximo de pó sem acionar minha alergia, abri o exemplar e erguia na altura do rosto lendo a primeira página.‘Emma ficou interiormente satisfeita de ter alcançado tão repentinamente esse raro ideal das existências débeis, que os corações medíocres nunca chegam a atingir. Deixou-se então deslizar pelos meandros lamartinianos, escutou as harpas sobre os lagos, todos os cantos de cisnes moribundos, todo o cair de folhagem, as virgens puras que sobem ao céu e a voz do Eterno falando nos vales. Enfastiou-se; não o quis confessar e continuou por hábito, depois por vaidade, e ficou, por fim, surpreendida quando se sentiu apaziguada, sem mais tristeza na alma do que rugas no rosto.’
-Você pode estar morto, mas encarar alguém em silêncio ainda é considerado estranho. – falei em tom baixo ao abaixar o exemplar e encarar o rapaz no outra extremidade da mesa.
A alguns minutos havia percebido sua presença, o ar morno que se chocou com meu rosto e o cheiro de hortelã que de repente pairava ao meu redor. Era como um breve anuncio da sua presença.
Justin deu um meio sorriso e apoiou as mãos sobre a mesa, lhe dando um ar mais encantador sua camisa estava com alguns botões abertos.
-Não queria atrapalhar sua leitura, parecia tão concentrada. – afirmou em um cauteloso. –E gosto de te observar. – franzi o cenho e apertei os lábios em um bico.
-Quer dizer que você anda me observando sem eu perceber? Fofo, mas isso soa como obsessão. – Falei de uma vez, mas sem parecer rude.
-Você pega uvas na dispensa toda sexta feira às quatro horas da tarde. Isso é obsessão. –Minha gargalhada envergonhada e quase sem som me fez esconder o rosto por alguns instantes, como diabos ele sabia daquilo? – Você é bonita, apenas gosto de te observar. – afirmou não se desestabilizando pelo meu ataque idiota.
-Tudo bem, você venceu essa. – afirmei de dando como vencida.
-Como sabia que estava te observando? – indagou curioso.
-Seu cheiro. –o rapaz fez uma careta juntando as sobrancelhas, suspirou fazendo barulho e puxou a gola da camisa cheirando a mesma.
-Esta enganada não tem cheiro. – falou seguro de si.
Fiz sinal pra que se aproximasse de mim, ele se moveu rapidamente e puxou uma cadeira sentando ao meu lado. Puxei a gola da sua camisa com cuidado e inspirei a fragrância de hortelã que exalava dela. No primeiro momento ele não se convenceu então repeti o movimento inspirando o seu cheiro novamente.
-Você tem cheiro de hortelã fresca – ele sorriu brevemente. – Ainda não se convenceu?
-Sim, mas pelo fato de ser hortelã, tinha uma mania horrível de mascar hortelã, deve ser por isso. – ele segurou minha mão e levou pra perto dos lábios dando um leve beijo. –Você reagindo bem. – Não notei sua frase no primeiro momento, graças a nossa proximidade pude me permitir encarar seu rosto desenhando os traços fortes, seu maxilar com um desenho masculino e sexy. Lábios rosados e com leve ondulações, o nariz reto e proporcional ao rosto. Não poderia deixar de perceber seu Iris cor de mel combinando com os cilhos longo. Sabia que já tinha feito essa mesma constatação, no entanto era como se um feitiço fosse jogado em mim cada vez que ele estava presente. – Agora é você quem esta encarando Milady. – abaixei o olhar em um riso picotado.
-O que falou antes? – perguntei ao direcionar o olhar aos botões da sua camiseta e toca-los com as pontas dos dedos.
-Você encarando o fato da minha existência, muito bem. – rolei os olhos brevemente.
-Ficaria surpreso com as coisas que ando encarando muito bem. – aproveitei minha mão sobre sua camisa e a puxei fazendo o mesmo se alavancar na minha direção chocando nossos lábios em um beijo rápido e satisfatório. – Você realmente morreu em incêndio? – ainda estava de olhos fechados quando fiz essa pergunta. Aquela definitivamente entraria para o livro de frases que nunca se deve falar após um beijo.
-Sim. – respondeu brevemente e se inclinou me beijando, antes que pudesse aproveitar o beijo o afastei. – Fiz algo errado? – perguntou hesitante. Me lembrei das palavras do guia no museu, dia atrás.
-Por que estava no celeiro com ela? Estavam transando? – sua expressão foi mudando de repente – Por que não saíram quando o fogo começou? Era tanta distração assim? – mesmo notando sua mudando de humor devido ao assunto não parei com as perguntas. –Afinal é um celeiro, deveria ter mais de uma forma de sair.
-É uma longa história Milady – desconversou afastando o rosto do meu.
-Tenho tempo, a não ser que você não queria falar sobre isso. –imediatamente ele respondeu.
-Eu não quero falar sobre isso.
-Se gosta tanto de me observar deve saber que eu não me dou por vencida tão fácil. – toquei a ponta do seu queixo com o dedo indicador fazendo um leve carinho. – Se não me disser eu vou descobrir.
-Não posso lhe impedir – se pronunciou suspirando pesadamente. –Aliás, sua amiga esta bem? – semicerrei os olhos com a sua pergunta, não compreendia a quem ele se referia.
-Serena? – indaguei ficando curiosa com a sua preocupação repentina. – Como sabe o que houve com ela?
-Eu estava lá, tentei impedir, mas foi rápido demais. – Um misto de confusão e surpresa forçou meu cenho deixando minha expressão notoriamente carrancuda.
-Impedir? Sabia que aquilo iria acontecer. OMG! –meu tom de voz subiu abruptamente, ele pareceu alarmado. Olhou pros lados e em seguida se atirou na minha direção pressionando nossos lábios.
Não tive consciência de fechar os olhos no primeiro instante, havia algo ironicamente mais estranho que o nosso encontrando acontecendo ali. Sabia que ele estava tentando me distrair, e não minha intenção ceder, assim como nunca fora minha intenção me envolver com um defunto estupidamente bonito. Pensei em quais armas usaria para lutar e arrancar a verdade dele, mas antes que pudesse me defender já estava entregue aos seus beijos e toques quentes. Como era possível ele me ter tão fácil e tirar a atenção de algo que...bem nem me lembro mais.
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Página Vinte Seis
Misteri / ThrillerSeja bem vindo a Chermont ! Um internato para adolescentes renegados por suas famílias. Onde qualquer insanidade se transforma na melhor distração. O lar de criaturas que se escondem nas sombras e te enfeitiçam com sua luz. Almas solitárias...