TAPE #10

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A câmera da cozinha focou em um homem sentado de costas, usando camiseta vermelha e samba-canção azul.

— Como ela está? — Perguntou uma segunda pessoa no cômodo; uma senhora magra, de cabelos castanhos na altura dos ombros e usando vestimentas leves, de tom branco. Estava sentada na mesa da cozinha, com um prato vazio em sua frente e dava de comer para Billie com uma colher azul de plástico. Era Abriz, mãe de Harrison e Vivian, e possuía olheiras profundas, provavelmente devido ao choro.

— Agora — Harry suspirou, jogando o guardanapo de papel usado em seu prato; ele estava sentado na bancada circular —, ela está dormindo. Mas precisei dar dois calmantes para que conseguisse isso. Estava muito agitada quando a encontrei desmaiada no chão do quarto. Acredito que toda essa tensão com Billie esteja fazendo mal a ela.

A doce melodia de "The Winner Takes It All" do Abba soava no celular na mão de Billie, que o fazia de aviãozinho, levantando para cima e para baixo; imitando o movimento da aeronave; parando os movimentos apenas para esperar a avó colocar a comida em sua boca.

Terminando de dar a comida para o neto, Abriz se levantou, levou os pratos sujos até a máquina de lavar louças e montou uma bandeja de plástico com suco, pão e um pouco sopa.

— Vou levar algo para ela comer — Abriz respondeu, com um sorriso tímido nos lábios. Harrison concordou, enquanto deslizava o dedo por um tablet branco, terminando de enviar alguns e-mails para os agentes da funerária.

E aconteceu numa fração de segundo. Um movimento nas galáxias, que deveria ter demorado milênios, ocorreu num piscar de olhos. Chegando nos pés da escada, Abriz parou abruptamente, olhando novamente em direção à cozinha.

Registrada pela câmera do hall de entrada, a senhora pareceu atordoada.

— Harry? — A voz dela estava esganiçada. — Harry?! O que eu estou fazendo aqui?

Na cozinha, Harrison abaixou os ombros e inspirou, coçando os olhos; lamentando-se em silêncio por uma doença que, nem ele, e muito menos os médicos, eram capazes de lutar contra.

O segundo semestre de 2002 teve um sentido singular na vida do rapaz. Sua mãe recebeu o diagnóstico de doença de Alzheimer. Isso gerou nele um distanciamento dos sentimentos e de sua própria fé. Por mais que clamasse por ajuda, ele sabia que ela não viria.

Afastando-se das antigas crenças que a sociedade lhe insistia a acreditar, buscou leituras, contatos com pessoas que vivenciavam situações similares à dele e passou a participar de cursos e oficinas sobre Alzheimer. Dos seis familiares ao seu lado, pôde contar com apenas três. Aliou-se àqueles que lhe apoiavam e compreendiam a urgência das medidas.

No caminho realizado até a presente data, o sofrimento e o desgaste tinha sido vivenciado por presenciar o Alzheimer apagar as conexões de seu mundo com aquele de sua mãe. Viver num local despreparado para o convívio com a idosa lhe trouxe enorme aprendizado e crescimento, e o tem impulsionado a continuar desde então.

Harry apagou a luz da cozinha, pegou Billie no colo e caminhou em direção à mãe; lhe deu um beijo na testa e subiu as escadas com ela, deixando a no quarto de hóspedes. Ela acabou ficando com a bandeja contendo o jantar de Barbara.

— Você veio passar alguns dias comigo e com os seus netos, mãe — respondeu o filho, com um olhar bondoso.

Abriz concordou, ambígua. Ela nunca argumentava com Harrison; no fundo, de certo modo, ela sabia que havia algo de errado com sua memória. Algo que devorava sua mente tão severamente quanto os vermes em um corpo em decomposição.

Harry encostou a porta do quarto da mãe e caminhou até o quarto de Billie, onde o colocou na cama, puxou os edredons até o seu pescoço e lhe deu boa noite. Foi até a janela, trancou-a e olhou para baixo, pelo vidro. Na lateral da casa, a janela dava vista direta para a enorme avenida central que levava à rua Madison.

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