TAPE #14

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Às vezes, o mundo dos vivos se mistura com o mundo dos mortos, sendo, deste modo, fácil compreender o ponto exato em que ambos se encontram. O que acontecia com a família Patterson não possuí explicação coerente, apesar do médico da família, Rick Shepard, da neurologista, Bianca Stewart e do psicólogo, Ethan Stanley, afirmarem suas opiniões como depressão, esquizofrenia, hiperatividade e até mesmo síndrome de possessão, sendo esta última diagnosticada pelo irmão de Barbara, o padre Samuel. Muitas coisas andavam acontecendo em um curto espaço de tempo e, naquela altura, o paranormal era a única coisa que fazia sentido.

Sabe aquela sensação que você tem quando está contando uma história e percebe que está deixando as melhores partes de fora? Essa andava sendo a vida do casal e das crianças em relação ao mundo exterior fora da casa. Pequenas coisas aconteciam aqui e ali no meio do dia. Alguma coisa muito drástica emergia durante a madrugada. Quanto mais o casal acreditava que era a colisão dos dois mundos, mais forte aquilo parecia ficar.

No começo, Harrison se mostrou o mais pé-no-chão da casa. Deve-se isso a suas crenças, ou então, a falta dela. Harry era ateu, e várias perguntas eram respondidas por ele através do raciocínio lógico. Como quando Barbara teimava em lhe dizer "Se Deus não existe, como [alguma coisa X] existe"? Para o homem, era uma questão fácil de ser obtemperada.

Alguns tipos de argumentações são sólidas apenas na aparência, e são chamadas de falácias. A afirmação acima constituía a falácia da ignorância: só porque se ignora a existência de respostas alternativas a um problema, isso não significa que possamos adotar a resposta que bem entendemos. Por exemplo, até muito recentemente na história humana, era perfeitamente lícito usar argumentos como "mas se Zeus não existe, de onde vêm os raios?" Aqui fica claro que o desconhecimento de meteorologia e eletromagnetismo não é uma prova da existência de Zeus. O mesmo se dá quando o argumento se refere a outros deuses, ou a outros fenômenos de origem desconhecida para o interlocutor.

Para ele, aquele era um dos mais populares "argumentos" pela existência de deuses, embora os valores de Y dependam muito do lugar e da época. Fenômenos climáticos e sísmicos já estiveram muito em moda, mas atualmente estão em baixa. Hoje em dia, os mais comuns são "o homem", "a vida", "a Terra" e "o universo", e o motivo é claro: já é de conhecimento geral que existem explicações cem por cento naturais e até triviais para o clima e os terremotos.

Deuses sempre foram chamados para explicar o desconhecido, e todo deus que cumpre essa função tem um nome: deus das lacunas. Isso porque esse deus preenche as lacunas do conhecimento de uma época. O problema é que à medida que o conhecimento científico avança, ele inexoravelmente preenche essas lacunas, tomando o lugar dos deuses e deixando cada vez menos espaço para eles. Harrison pensa que quem acredita no divino porque não sabe de onde veio a vida está agindo de maneira idêntica a quem acreditava no divino por não saber de onde vem a chuva. Só muda o objeto da ignorância. Dar nome de "Deus" à própria ignorância não parecia ser uma boa ideia.

Até aquele acontecimento mais recente.

Harrison posicionou a filmadora portátil em seu próprio rosto. O cômodo estava claro por conta dos raios brilhando do céu no horizonte; a tempestade ainda caía, mas de maneira menos destrutiva como na madrugada. Ele ainda continuava a tremer; lágrimas escorriam por seu rosto, fazendo um caminho tortuoso até pingar de seu queixo.

O homem não possuía certeza do que tinha acontecido quando apagou. Ele parecia ainda sentir a baforada fétida em seu rosto, pois, com uma das mãos, esfregou o pescoço de maneira preocupada. Sua mente estava a mil para conseguir dar uma explicação para o evento. Era muita coisa para seu cérebro processar, portanto, falhou e sucumbiu.

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