O mundo está ficando mais desumanizado? Culpa da mania de perfeição
Na segunda metade do século XIII, na França, um grupo de filósofos
conhecidos como averroístas latinos (porque sendo cristãos latinos,
leitores de Aristóteles e seu comentador espanhol mouro Averróes
receberam o nome de averroístas latinos). Esses autores tiveram
muita dor de cabeça com a Inquisição porque afirmavam que a
felicidade (entendida como vida equilibrada e longe de vícios) podia
ser atingida via uso do intelecto (algo próximo ao que hoje
chamaríamos de razão). Nesse sentido, seguiam a filosofia tanto de
Aristóteles quanto de seu comentador muçulmano Averróes. O
conflito veio porque, para a teologia da Sorbonne (leia-se, da Igreja),
a felicidade era muito mais dependente do conhecimento revelado
(teologia, Bíblia, magistério da Igreja) do que da filosofia,
compreendida como uma atividade um tanto livre de dogmas. Esses
filósofos (o mais famoso deles, o médico Siger de Brabant, membro
de uma importante família de uma região que hoje é parte da Bélgica
e leva o mesmo nome, Brabant) tiveram de sair da Sorbonne e muitos
(Siger, entre eles) fugir de Paris. Essa é a primeira vez na história que
se conhece uma perseguição a intelectuais pela Igreja.
Alguns montaram grupos de estudo de Aristóteles e
Averróes nas pequenas ruas ao redor da Sorbonne, e, então, aquela
região ficou conhecida como quartier latin, por causa desses
averroístas latinos e não por causa do exilados latino-americanos
dos anos 1960 – quiseram eles ter essa importância toda na vida de
Paris.
O foco filosófico do problema, porém, era: o homem,
pelo uso livre da razão, pode construir sua felicidade e atingir um
grau maior de perfectibilidade (tornar-se cada vez melhor)? Os
averroístas latinos achavam que sim, os católicos (que liam
Aristóteles também, mas davam uma aliviada na autonomia da razão
humana sem a graça de Deus) achavam que não. No século XIII, os
católicos levaram a melhor de certa forma, pelo menos no que se
refere ao emprego da universidade – até hoje, a universidade é muito
mais uma questão de quem consegue botar para fora seu inimigo do
que quem pesquisa mais. Mas isso é outra história.
Já nos séculos XVI e XVII na França, a coisa virou. A
tendência, inclusive por causa do esfacelamento feudal e da entrada
da burguesia e sua busca de sucesso e aperfeiçoamento nos negócios,
foi a virada do jogo. Já no século XVIII, a ideia de perfectibilidade do
homem a partir do uso de sua razão, técnica e ciência estava
instalada, como todo mundo sabe quando estuda o Iluminismo e o
surgimento da ciência.
A verdade é que uma das razões da desumanização, de que
pouca gente se dá conta, é essa busca de perfectibilidade contínua da
vida em todas as fren tes. Inteligentinhos de todos os tipos berram
contra a mercantilização das relações, que é verdade e faz mal
mesmo, contra as máquinas, contra o capital, contra a Igreja, mas
não querem perceber que a principal causa da desumanização
moderna é a busca de perfeição, aperfeiçoamento, perfectibilidade ou
progresso (tudo mais ou menos a mesma coisa).
Os medievais entendiam que o homem tem um dano em
sua estrutura, que é o pecado. Com a superação dessa teoria (o livro
de Pico della Mirandola Discurso sobre a dignidade do homem, de
1498, é um marco na virada desse debate) pelos defensores da
perfectibilidade moral e técnica do homem, entraremos na era em
que muitos supõem que é o próprio homem quem atrapalha seu
aperfeiçoamento, na medida em que é de carne e osso e que tem
paixões desorganizadoras. Vivemos numa era eugênica: todos
querem ser belos, saudáveis, eternos, bem resolvidos e cheios de
técnica. O pós-humanismo (não vou discutir essa teoria louca aqui)
crê que numa mescla com a robótica vamos superar esse corpo
miserável. A moçada do marketing moral acha que com a educação e
a propaganda podemos criar um mundo em que todos sejam
homens, mulheres e labradores ao mesmo tempo, e que ninguém
tenha ciúme ou vontade de comer picanha. Como não ver que a fúria
pelo progresso contínuo chegará à conclusão de que é o humano no
homem que nos atrapalha?
Isso jamais será dito de forma clara porque somos a
civilização mais hipócrita que já existiu, mas a principal causa da
desumanização que enfrentaremos no futuro será aquela em nome do
bem e da qualidade de vida. Mas, enquanto isso estiver acontecendo,
os bancos farão comerciais de como lagos e montanhas são lindos e
bons para a saúde e o equilíbrio dos casais, sejam eles héteros ou
homos.
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Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe Pondé
RandomO objetivo deste livro é ajudar o leitor a pensar com a sua própria cabeça. Para tal, o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, autor de vários best-sellers, se apoia na história da filosofia para apresentar argumentos para quem quer discutir todo e...