A política como salvação
No século XVIII, o filósofo Jean-Jacques Rousseau criou a política
moderna e contemporânea em grande parte. Não estou dizendo que
ele tenha sido o maior filósofo da política – ao contrário, julgo-o
um dos primeiros intelectuais picaretas da história. Estou dizendo
que ele foi importante no modo como a política moderna e
contemporânea se constituiu. O mundo atual vê a política como uma
teoria da salvação do mundo. Alguns descrevem esse fato dizendo
que a política se fez teologia. Não é por outra razão que idiotas de
todos os matizes intelectuais gostam e usam a palavra utopia como se
ela descrevesse algo distinto de um resort numa praia imaginária.
Levar a sério uma utopia política é um atestado de retardo mental ou
mau-caratismo. Mas voltemos às implicações de uma política como
instrumento de salvação.
Antes de tudo, o que é política? Assumo, aqui, uma visão
mais maquiaveliana (Maquiavel, filósofo italiano da virada do século
XV para o XVI). Política é a arte de conquistar, manter, ampliar ou
destruir o poder. E, assim fazendo, tornar a vida dos seus súditos
mais ou menos instável. Ponto final. Uma engenharia de algum tipo,
descolada de qualquer idealização. O bem político é uma sociedade
em que o poder está organiza do de forma tal que as pessoas andam
razoavelmente bem nas ruas. Não há um bem moral de qualquer tipo
na política. A política não deve discutir modelos de sociedade, a
política deve organizar essa coisa violenta chamada poder. Na
democracia, a política deve levar em conta a opinião popular (já
falamos disso antes). Parece-me importante que as pessoas possam
ser protegidas do poder do Poder, e isso só se alcança dividindo
institucionalmente o Poder, como dizia o francês Montesquieu no
século XVIII. E quando o Poder se identifica com o bem moral,
normalmente ele entende que qualquer divisão nele é uma redução de
sua capacidade de realizar o bem que carrega em si. E aí chegamos à
política de Rousseau e seu caráter salvacionista.
Não se deve esperar da política um mundo melhor. Devese
esperar um mundo em que o Poder fique tão controlado que ele
nos deixe em paz e nem lembremos dele ao acordar. Ele deve cuidar
de coisas técnicas e deixar que a sociedade cuide do restante. Mas,
como vemos em muitos casos desde o final do século XVIII, a política
se transformou no "lugar" de onde virá a salvação. Toda vez que a
política deve curar o mundo (como a graça de Deus na teologia, por
isso dizemos que a política tomou o lugar da graça), ela é temerária,
porque seu instrumento e objeto por excelência, o poder, é sagrado
em sua função redentora. Assim como um Deus todo-poderoso pode
ser um poder perigoso, a política endeusada como divina se torna
maléfica.
Não vejo muita saída para isso. O mundo contemporâneo
da democracia tem uma vocação para ser devorado pela política
como linguagem das coisas. Tudo é política porque em tudo há poder
– como diria Michel Foucault. Na minha opinião, Foucault era um
autoritário, como todo filósofo que traz a verdade libertadora do
mundo em sua cabeça, mas que ele tinha razão ao apontar a
capilaridade do poder nas relações, ele tinha. E sendo a política na
democracia, em parte, construída na conversa entre as pessoas
(Tocqueville dizia que a democracia é tagarela), não há como escapar
da política no mundo contemporâneo e sua vida passar por ela.
Autores como o próprio Tocqueville, Montesquieu e Maquiavel
(ambos citados também há pouco), Locke (século XVII), Oakeshott
(século XX) discutem a importância da política sem fazer dela um
credo, como Rousseau, Marx, Foucault, Bourdieu, Badiou e outros
membros do clero. O risco da política como salvação total é que ela
vai degenerar em violência sagrada. Melhor lidar com a fragilidade
de um sistema que depende da opinião de idiotas do que lidar com
um regime em que idiotas não aceitam a opinião dos outros porque
supõem que carregam um mundo melhor na barriga.
Observe uma coisa: todo filósofo ou similar que julga ser
o sacerdote da política redentora é arrogante. Não é à toa que Edmund
Burke, no final do século XVIII, chamava Rousseau (o pai da política
como teologia) de o "filósofo da vaidade". Assim como o clero
cristão era vaidoso em se achar mais perto de Deus, o clero
intelectual fazendo política salvacionista é vaidoso. Não confie em
ninguém que queira salvar o mundo. Melhor confiar em grandes
pecadores.
Por isso tudo, como diz Michael Oakeshott, filósofo
inglês do século XX, prefiro políticos sem concepção de como deve
ser o mundo. A pior coisa é um líder político que queira me salvar.
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Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe Pondé
RastgeleO objetivo deste livro é ajudar o leitor a pensar com a sua própria cabeça. Para tal, o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, autor de vários best-sellers, se apoia na história da filosofia para apresentar argumentos para quem quer discutir todo e...