O homem é um ser racional?
Não creio, sinto lhe dizer. Você acha que como sou um filósofo
deveria crer que o homem seja um ser racional, mas lamento dizer
que julgo algo irracional pensar que o homem, diante de tantas
provas, seja um ser racional. Ou, talvez, eu deveria ser mais
comedido e dizer que o homem é apenas em parte racional, e assim
não destruir sua fé no conhecimento. Como já disse antes, quando
discutíamos meu pequeno coro de demônios, estou longe de achar
que o conhecimento torne um homem melhor. Mais sofisticado com
certeza, melhor em termos de caráter? O contrário é mais provável.
A fé em que o homem seja um ser racional é uma bobagem
recente. Qualquer hegeliano ou marxista de plantão diria que só com
a emergência do mundo moderno burguês, que precisa de uma
sociedade racionalizada em seus processos para que o dinheiro
circule com segurança de retorno ainda maior, é que o homem
começou a querer se ver como um ser plenamente racional. Por isso,
o Iluminismo e sua baboseira racionalista. Mesmo para um Platão
que buscava se livrar do pessimismo trágico da religião grega era
claro que no homem nem tudo é racional. A ideia de que o homem é
um ser racional vai bem com a ideia, necessária no mundo burguês,
de que ele é autônomo. Mas tanto a racionalidade quanto a autonomia
são uma pequena parte da vida humana, ainda que não devamos
buscar mais racionalidade e mais autonomia da vida. Kant estava
certo em defender a noção de "maioridade" como sendo a capacidade
humana de assumir suas decisões a partir de um esforço de
autonomia e racionalidade. Nem sempre isso é possível.
O que faz o homem não ser racional plenamente? Muitas
coisas. Instintos, taras, o corpo e sua fisiologia e patologia, o
contexto psicológico em que nasceu, a falta de grana, o
ressentimento que o afoga em inveja do cunhado mais rico ou da
cunhada mais gostosa, enfim, motivos é que não faltam para não
sermos plenamente racionais.
Existe, entretanto, um motivo mais profundo para isso.
Os gregos usavam a palavra pathos para descrever forças, internas ou
externas, capazes de nos submeter. Traduzimos essa palavra por
paixão ou emoção, mas também por doença (patologia). Nossa
capacidade de agir racional e autonomamente depende do quanto de
pathos age sobre nós. Portanto, desde a filosofia antiga, suspeita-se
dos limites da autonomia racional humana. Na filosofia medieval, o
cristianismo acaba trazendo para dentro desse debate a ideia de
pecado. O pecado destrói nossa capacidade de julgamento e
entendimento da realidade, fazendo-nos de escravos da
concupiscência (a atração irresistível pelo pecado): basta lembrar de
você dominado pelas pernas de uma gostosa, ou você, cara leitora,
desejando muito fazer coisa errada por aí...
Já na modernidade, autores como os românticos (de que já
falamos antes) duvidavam dessa racionalidade toda e achavam que ela
poderia nos enlouquecer porque seria contra nossa natureza meio
misteriosa e irracional. Foram esses românticos que pela primeira
vez falaram em inconsciente. Freud e seus seguidores criaram uma
disciplina, a psicanálise, que negava a plena autonomia do Eu
("ferida narcísica" na linguagem de Freud era saber que não somos
senhores em nos sa própria casa, o inconsciente é esse senhor).
Imersos em traumas inconscientes e em pulsões infinitas, para a
psicanálise, conseguimos só com muito esforço um pouco de razão e
um pouco de autonomia.
Mesmo o marxismo e companhia e seu conceito de
ideologia determinaram que nossa classe econômica definiria em
parte nosso pensamento e nossas emoções.
Então, o que sobra disso tudo? Vale a pena buscar ser
racional e responsável? Claro que vale, mas não queira recompensas.
Nada garante que vai dar certo, mas, creio, a experiência do
amadurecimento mostra que, ainda que seja precária, a tentativa de
olhar para o mundo pelos olhos da razão sempre nos ajuda a
entendê-lo melhor. E isso nos leva a alguma experiência de
autonomia. O homem não é um ser racional plenamente, nem pode
sê-lo, a menos que seja doente. Nem por isso devemos desistir de ser
racionais em alguma medida. Como dizia o grande Nelson Rodrigues
(século XX), a razão é algo que se busca com o mesmo sofrimento
que a santidade. Muitas vezes contra sua própria natureza de bicho.
Nesse sentido, ser racional é um esforço que merece nosso cuidado.
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Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe Pondé
DiversosO objetivo deste livro é ajudar o leitor a pensar com a sua própria cabeça. Para tal, o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, autor de vários best-sellers, se apoia na história da filosofia para apresentar argumentos para quem quer discutir todo e...