CAPÍTULO 9

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O sobrenatural

Ainda estamos no terreno da religião e da metafísica quando falamos

de sobrenatural. A palavra não tem o mesmo pedigree como tem

metafísica, porque quando pensamos em sobrenatural, pensamos em

filme de terror ou almas penadas à noite na casa da fazenda. Mas ela

também tem uma origem digna na filosofia, e essa origem tem a ver

com a ideia do que seria além ou acima da natureza ou do natural no

homem e no mundo, o que se confunde com a ideia de ação de Deus

no mundo. Podemos dizer que a palavra tem um significado na

filosofia e outro nas religiões, sendo o primeiro mais ligado à ação

de Deus no comportamento humano por meio da graça divina (como

dizia Santo Agostinho no início do século V) e o segundo mais ligado

a crenças espíritas que associam o sobrenatural a manifestações de

espíritos desencarnados no mundo dos homens. Acho este mais

importante para pessoas comuns e o anterior mais ligado ao

universo filosófico e teológico profissional, por isso vou dar mais

atenção ao sentido religioso da expressão: sobrenatural como

manifestação do mundo dos mortos. Você já viu alma penada? Ou

acredita nelas? Eu não, mas gostaria de conhecer uma.

Na peça Hamlet, de Shakespeare (século XVII), vemos na

primeira cena um exemplo que pode nos ajudar a entender o que se

quer dizer com manifestação do sobrenatural no sentido do senso

comum. O pai do Hamlet assassinado pelo irmão e pela esposa pede

vingança ao filho. Não precisamos ir adiante no enredo. A ideia mais

comum de sobrenatural é que ele seja o mundo dos mortos que se

relacionam com os vivos. Há sempre um vínculo moral entre esses

dois mundos em que um influencia o outro. Grande parte das crenças

em espíritos se alimenta dessa forma de vínculo. Esse tipo de crença

implica uma economia moral entre os dois mundos e também o

destino daqueles que morrerão um dia e dos que já morreram. A

questão essencial aqui é: por que esses mortos "precisam de nós,

meros vivos?". Porque não existem e são criações humanas. Esses

espíritos nunca sabem além do que sabemos: precisamos amar uns

aos outros, fazer menos guerra, ter menos poluição e combater o

apego material. Quem precisa de espíritos do além para saber que

estamos num atoleiro moral neste mundo dos vivos?

Em outra chave, esses mortos nos atormentam porque

eles mesmos são uns desgraçados, e a situação deles, talvez, não

tenha a ver diretamente conosco, mas com a vida deles enquanto

estavam vivos. E eles se envolvem conosco porque podemos

lembrar, por exemplo, alguém com quem tiveram vínculos

enquanto vivos, como no caso de Drácula e sua esposa reencarnada na

personagem do romance Drácula, de Bram Stoker (século XIX),

chamada Mina. De qualquer forma, a temática moral se impõe, assim

como a da felicidade versus infelicidade. É interessante perceber como

os afetos são a marca no mundo do sobrenatural. A crença nessa

dimensão pode ocupar a vida de muitas pessoas, mesmo que seja

pelo medo que as faz sentir. Resta nos perguntarmos a razão de,

depois de tanto conhecimento científico acumulado, tanta gente ainda

se sentir atormentada e atraída por esse tipo de coisa. A primeira

conclusão é que permanecemos, em alguma medida, na pré-história,

amedrontados pela escuridão do mundo e de nós mesmos. Sem

dúvida, o materialismo e sua afirmação de que a vida depois da

morte é uma ilusão me parecem uma opção mais tranquila do que a

ideia de permanecer existindo infinitamente e sob ação de afetos tão

fortes, apesar de que acho mais dramática e bela a ideia de uma

existência atormentada para sempre do que o repouso na pedra,

como afirma o materialismo.

Ninguém em sã consciência pode dizer a última palavra

nesse terreno do sobrenatural. A crença, sendo pré-histórica, está

fincada em solo humano, e não será um pouco de ciência que a fará

desaparecer, mesmo porque, yo no creo en brujas, pero que las hay, las

hay.

Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe PondéWhere stories live. Discover now