O sobrenatural
Ainda estamos no terreno da religião e da metafísica quando falamos
de sobrenatural. A palavra não tem o mesmo pedigree como tem
metafísica, porque quando pensamos em sobrenatural, pensamos em
filme de terror ou almas penadas à noite na casa da fazenda. Mas ela
também tem uma origem digna na filosofia, e essa origem tem a ver
com a ideia do que seria além ou acima da natureza ou do natural no
homem e no mundo, o que se confunde com a ideia de ação de Deus
no mundo. Podemos dizer que a palavra tem um significado na
filosofia e outro nas religiões, sendo o primeiro mais ligado à ação
de Deus no comportamento humano por meio da graça divina (como
dizia Santo Agostinho no início do século V) e o segundo mais ligado
a crenças espíritas que associam o sobrenatural a manifestações de
espíritos desencarnados no mundo dos homens. Acho este mais
importante para pessoas comuns e o anterior mais ligado ao
universo filosófico e teológico profissional, por isso vou dar mais
atenção ao sentido religioso da expressão: sobrenatural como
manifestação do mundo dos mortos. Você já viu alma penada? Ou
acredita nelas? Eu não, mas gostaria de conhecer uma.
Na peça Hamlet, de Shakespeare (século XVII), vemos na
primeira cena um exemplo que pode nos ajudar a entender o que se
quer dizer com manifestação do sobrenatural no sentido do senso
comum. O pai do Hamlet assassinado pelo irmão e pela esposa pede
vingança ao filho. Não precisamos ir adiante no enredo. A ideia mais
comum de sobrenatural é que ele seja o mundo dos mortos que se
relacionam com os vivos. Há sempre um vínculo moral entre esses
dois mundos em que um influencia o outro. Grande parte das crenças
em espíritos se alimenta dessa forma de vínculo. Esse tipo de crença
implica uma economia moral entre os dois mundos e também o
destino daqueles que morrerão um dia e dos que já morreram. A
questão essencial aqui é: por que esses mortos "precisam de nós,
meros vivos?". Porque não existem e são criações humanas. Esses
espíritos nunca sabem além do que sabemos: precisamos amar uns
aos outros, fazer menos guerra, ter menos poluição e combater o
apego material. Quem precisa de espíritos do além para saber que
estamos num atoleiro moral neste mundo dos vivos?
Em outra chave, esses mortos nos atormentam porque
eles mesmos são uns desgraçados, e a situação deles, talvez, não
tenha a ver diretamente conosco, mas com a vida deles enquanto
estavam vivos. E eles se envolvem conosco porque podemos
lembrar, por exemplo, alguém com quem tiveram vínculos
enquanto vivos, como no caso de Drácula e sua esposa reencarnada na
personagem do romance Drácula, de Bram Stoker (século XIX),
chamada Mina. De qualquer forma, a temática moral se impõe, assim
como a da felicidade versus infelicidade. É interessante perceber como
os afetos são a marca no mundo do sobrenatural. A crença nessa
dimensão pode ocupar a vida de muitas pessoas, mesmo que seja
pelo medo que as faz sentir. Resta nos perguntarmos a razão de,
depois de tanto conhecimento científico acumulado, tanta gente ainda
se sentir atormentada e atraída por esse tipo de coisa. A primeira
conclusão é que permanecemos, em alguma medida, na pré-história,
amedrontados pela escuridão do mundo e de nós mesmos. Sem
dúvida, o materialismo e sua afirmação de que a vida depois da
morte é uma ilusão me parecem uma opção mais tranquila do que a
ideia de permanecer existindo infinitamente e sob ação de afetos tão
fortes, apesar de que acho mais dramática e bela a ideia de uma
existência atormentada para sempre do que o repouso na pedra,
como afirma o materialismo.
Ninguém em sã consciência pode dizer a última palavra
nesse terreno do sobrenatural. A crença, sendo pré-histórica, está
fincada em solo humano, e não será um pouco de ciência que a fará
desaparecer, mesmo porque, yo no creo en brujas, pero que las hay, las
hay.
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Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe Pondé
RandomO objetivo deste livro é ajudar o leitor a pensar com a sua própria cabeça. Para tal, o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, autor de vários best-sellers, se apoia na história da filosofia para apresentar argumentos para quem quer discutir todo e...