Parte 6

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A primeira coisa que sentiu foi o gosto de ferro na boca, depois a dor aguda em seu braço. Abriu os olhos, mas a visão estava turva e avermelhada. Não conseguia mexer o corpo, não conseguia ouvir barulho algum. Seus olhos viam algo que lembrava uma árvore, iluminada por uma luz trêmula. Viu também uma mancha que parecia uma pessoa arrastando outra, com dificuldade, essa mancha ergueu a mão e da mesma surgiram brilhos sem som, sem cor. Ela piscou e a vermelhidão em seus olhos parecia diminuir, mas tudo ainda estava turvo, sem sentido.

Aquela pessoa foi até ela, passou a mão em seu rosto e só assim ela notou que ainda chovia, a água parecia limpar seus olhos, ao menos ela conseguia ver outras cores além do vermelho. Entendeu que era uma pessoa que a segurava e a arrastava dali. Gritou mas não ouviu sua voz, tentou colocar a mão no braço, mas seu corpo não se mexia.

Quando acordou novamente, ouvia seu nome como se fosse dito debaixo d'água, sua visão turva ainda não havia melhorado e a dor continuava pulsando em seu braço. Chorava de dor, gemia e conseguia ouvir suas próprias lamentações. Sentia-se perdida, sentia medo, não sabia o que estava acontecendo, não sabia nem quem era. Só sabia que doía.

...

Erika não queria se olhar no espelho, isso ela deixou bem claro no seu diário. Sentiu os pontos no rosto com a ponta dos dedos e, enquanto deslizava-os pela face, sentia o resto dos arranhados e inchaços. Suspirou e encostou novamente a cabeça no travesseiro, olhando para o teto branco do hospital, o que últimamente parecia normal para ela. Os médicos disseram, mais uma vez, que foi um milagre ela ter sobrevivido ao acidente. Já Andressa e Cláudio estavam bem, feridos, mas estavam bem. Erika era a única sem cinto dentro do carro.

A ideia de ser imortal agora não passava de outra palavra para aleijada. De que adiantaria ficar viva, se ficasse como um vegetal em uma cama de hospital, dando ainda mais trabalho para seus pais?

Uma enfermeira entrou no quarto, carregando uma pequena bandeja com o café da manhã. Erika sentou na cama, ainda sentindo o desconforto do corpo e sem muita habilidade com um dos braços engessados, e esperou que sua pequena mesa fosse posta.

– Há quanto tempo estou aqui? – perguntou, logo após tomar um gole de suco de laranja, sentindo pontos no rosto.

– Alguns dias... – respondeu a enfermeira, aborrecida.

Pegou a prancheta com os dados de Erika e depois levantou os olhos, sorrindo.

– Amanhã faz uma semana.

– Uma semana? – sorriu boba. Ao menos não foram tantos meses como da última vez.

– Última vez?

– É... Fui baleada por um maluco na escola – disse naturalmente, entre um gole de suco e outro. O que aconteceu com os outros dois, que estavam comigo no carro?

– Nada grave – respondeu rapidamente. Olha, se precisar de alguma coisa, é só apertar esse botão, ok? – apontou um pequeno controle na cama. Aproveite seu café da manhã.

– Uhum... Obrigada. Ah! Mais uma coisa, e minha família?

– Família?

– Sim, eu tenho uma. Será que dá pra avisar eles que estou viva?

– Claro. Me dê o número, por favor.

A enfermeira saiu de lá em seguida, deixando Erika perplexa, sem entender como aquele hospital não tinha entrado em contato com sua família ainda. Olhou para os outros leitos, seis ao total naquele quarto. Havia apenas ela e mais outros dois ocupados, um por uma senhora e outro por uma criança. A senhora ainda dormia, estava aparentemente saudável, já a criança estava com a cabeça enfaixada, comendo rapidamente seu mingau enquanto assistia a um desenho infantil na televisão. Erika começou a voltar àquele estado de aceitação, no qual pensava "pelo menos estou viva ainda". Não deu muita atenção pelo fato que ocorreu, nem pelo Vazio. Naquele momento, sentia um pouco de paz, como se o Vazio tivesse dado uma trégua.

VazioOnde histórias criam vida. Descubra agora