Cheng levou as duas a um ferro-velho não muito longe de onde morava. O Dono era um homem magricelo e alegre, com mais de quarenta anos, de cabelo grande e uma barba cheia, que quase escondia sua boca, ambos castanhos. No topo da cabeça, um boné com a marca do ferro-velho, em azul e branco encardido.
O lugar era um cemitério de automóveis, com várias carcaças empilhadas e peças caídas pelo caminho, onde colunas de pneus pareciam fazer uma espécie de mureta, dividindo e organizando aquele lugar. Os quatro andavam por um caminho de terra, as duas garotas olhando ao redor, analisando com curiosidade. Cheng e o Dono conversavam sobre coisas corriqueiras da vida, como "por onde anda?" ou "como tem passado?". Para Erika, pareciam amigos de longa data, e realmente eram.
Passaram por uma pequena ladeira que levava a um buraco cavado, grande o suficiente para caber uma piscina com três metros de profundidade, Dentro havia cerca de cinco espantalhos, feitos com roupa e estufados com tiras de borracha e palha, cada um a uma distância de cinco metros do outro. As paredes daquele lugar eram apoiadas por carcaças de vários modelos, mas com uma coisa em comum, todas eram de carros de grande porte.
– Era pra ser uma piscina essa porcaria de buraco! – cuspiu no chão, olhando para as garotas. Aí eu ia ficar o dia inteiro dentro da água aqui no meu ferro-velho. Mas não! Tinha de ter espaço para guardar mais e mais lixo! Ao menos esse chinês, japonês ou seja lá o que ele for arranjou uma utilidade. Aí acabou que eu mesmo comprei um rifle, pra ficar brincando mesmo, sabe? Passar o tempo?
Erika sorriu sem jeito e olhou para os espantalhos, todos com roupas rasgadas e cheias de buracos. Franziska acendeu um cigarro e ofereceu para Dono, que aceitou prontamente, sorrindo, como se ganhasse o dia.
– Não é sempre, sabe? Que o Cheng vem com companhia pra cá – cutucou Erika, que estava de costas para ele. Cheng sempre vem aqui para atirar e tal, mas nunca trouxe companhia feminina – deu um trago longo, depois sorriu, baforando para cima. Teve aquela tal de... como era o nome dela mesmo? Ah, não vem ao caso, faz o quê? Uns três anos?
– Então... – disse Erika. Quando eu começo a atirar?
– É ela? – apontou para Erika, sorrindo. Cheng, puta que pariu! A menina tá cheirando a leite ainda.
Cheng olhou para Dono, que levantou as mãos e deu alguns passos para trás, passando os dedos sobre os lábios como se fechasse um zíper. Erika balançou a cabeça negativamente e sacou a arma que guardava na cintura, olhando para ela e vendo várias imagens em sua cabeça, dela matando, morrendo, se suicidando...
– Primeira coisa, tire a trava de segurança – mostrou onde era na arma. Se vai atirar, tire a trava, se vai guardar, ponha a trava. Faça isso vinte e uma vezes. Guarde, saque, destrave, puxe o gatilho, trave e guarde.
Erika deu de ombros e fez como o homem ensinou. A cada vez que Erika fazia o movimento, Cheng a corrigia, até chegar a um ponto aceitável. A partir desse ponto, ele a mandou sacar e guardar a arma, vinte e uma vezes, daquela forma. Esse processo foi demorado, Erika às vezes se confundia, guardava com ela destravada, travava ao atirar... Erros que custam uma vida, e por isso precisam de tanta atenção.
Enquanto isso, o Dono e Franziska ficavam sentados sobre um cubo de metal retorcido, que antes era um carro, fumando e conversando coisas corriqueiras. Erika tentava se concentrar ao máximo, mas às vezes dava uma olhada ou outra em Franziska, sentindo um certo ciúme por Dono estar conversando com a garota.
– Agora, você vai sacar dessa forma e aportar para o espantalho – mostrou como se faz e devolveu a arma a Erika. Vê esse pino central e esses outros dois? O ponto alinhado entre os três é onde seu disparo vai acertar. Agora vamos, vinte e uma vezes... –fez com a mão, sem pegar a arma de novo, ao lado de Erika. Saque, destrave, mire no peito, aperte o gatilho duas vezes, analise o alvo e, se necessário, dê um terceiro tiro nele no chão. Depois se aproxime do alvo com a arma apontada – andou até o espantalho, com o braço mirando o chão. Imagine ele caído e, se ainda se mover, dispare na cabeça –respirou fundo e olhou para Erika, apontando o chão. Caído, de perto, não há como errar a cabeça. De longe, nunca mire na cabeça, sempre no peito. Com dois disparos, um deles vai causar o dano desejado.
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Vazio
Teen FictionErika estava vivendo, sem saber muito o porquê disso. E nesses momentos de vida encontrou o Vazio, ou o Vazio a encontrou, e agora o pouco que sabia sobre a vida se tornou irrelevante. Ao tentar ser completo, o Vazio sempre cresce. Algumas pessoas...