Descanse em Paz

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Agora suas almas repousarão no Labirinto para sempre em forma de impressões junto às memórias do mundo e se unirão ao grande Universo. Em paz, assim como devo seguir - sem olhar para trás. Há coisas nas quais não devemos mexer, coisas que não mudam e devemos deixar em seu lugar sob os cuidados dos Treze ainda que não fosse essa a nossa ou a vontade Deles. Restava deixá-los, em respeito à suas vidas, e seguir em frente. O Labirinto cuidaria de cada história que ficara.

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Da pedra sobre a qual eu estava sentada o céu parecia uma aquarela a milhares de quilômetros acima de mim. Meus olhos ardiam de sono, mas minha mente não dormia por mais que meu corpo pedisse por isso. Então lá estava eu: sentada sobre uma pedra vendo os raios do nascer do sol desenhando numa enorme tela em branco de um novo dia no céu acima de mim. Só os Treze sabiam o quanto eu desejei que meus dias fossem fáceis e simples como um papel em branco na frente de uma criança com um pincel nas mãos - não era. A névoa fria da madrugada se dissipou e aos poucos os primeiros raios da manhã chegaram a mim. Timothy estava em algum lugar a uns bons vinte passos dali, ele havia feito questão de montar sozinho uma lápide para Nicolas e desde então permanecia em vigília imóvel ao lado do local escolhido sem falar comigo. A morte, entre todas as ironias da vida, é uma grande piada sem graça. Como eu poderia arrastar ele dali comigo? Eu pensei por um momento o que, no Universo, faria com que a gente estivesse preparado para o Labirinto dos nossos dez aos treze anos, então percebi que era um absurdo porque as pessoas não deveriam morrer lá dentro. A gente nunca está preparado para coisas que nunca deveriam acontecer (nunca?). Os Deuses estavam rindo de nós - naquele instante eu tive certeza - ou eu estava com muita raiva para pensar outra coisa.

Enquanto o sol secava o orvalho da manhã sobre a grama eu percebi como estávamos cercados por Vida e como a vida é feita de ironias. O mundo não havia parado para nós, os dias continuavam passando e eu tinha a cada manhã um dia a menos para conseguir sair do Labirinto até que a porta se fechasse para o início do próximo ciclo. Eu estava estranhamente calma. Dane-se. Por um instante imaginei que talvez eu nunca saísse de lá e qualquer esforço para me levantar de cima daquela pedra seria inútil e estúpido. Então sentei com as pernas cruzadas e fiquei ali sentindo o calor do dia sobre a pele e vendo o trabalho de pequenos insetos no chão com o gosto do sarcasmo preso na garganta: o mundo não havia parado para nós. Se houvesse um décimo quarto Deus somente para as ironias da vida, ele estaria sentado ao meu lado admirando a beleza dessa contradição - a vida continua mesmo quando uma vida acaba. Ah, ele não estaria rindo de mim, é belo a capacidade que o Universo possui de a tudo continuar mesmo que você esteja quebrado. Talvez esse Deus só sentasse em algum lugar privilegiado e assistisse a tudo. Eu quis sumir, odiei a todos, fiz milhares de promessas que sabia que não seria capaz de cumprir, mas naquele momento - uma fila extremamente organizada de formigas carregando folhinhas desviava de um graveto - eu admirava a beleza da contradição: o mundo não havia parado para nós depois de perdermos Gabriele e Nicolas. Não, ele funcionava alheio a nós. Talvez os Deuses esperassem mais de mim, talvez esperassem que eu seguisse em frente... Eles estavam pegando pesado e eu estava cansada demais, a fila de formigas era tão organizada, como era possível? Era estranho e sem sentido mas havia uma chama de esperança em algum lugar ali. Dizem que há ordem no caos, então havia um fio de luz no fim do túnel escuro e assustador que minha vida se tornara. Desejei que aquela fosse só a saída em meio ao caos.

O que quer que eu decidisse fazer da minha vida lá dentro, eu ainda precisava comer e sobreviver, se não aos outros, ao Labirinto e a mim mesma. Dizem que somos nosso maior inimigo, as vezes essa ideia me parecia estúpida mas bem poderia ser verdade se tivermos que lutar diariamente contra nossos medos e desejos: viver era difícil, desistir era fácil, morrer era fácil - viver era difícil. Minha flecha manchada com o sangue de Nicolas seria meu fardo, eu esfreguei os olhos ardendo de sono e desci da pedra para recolher materiais e fazer flechas novas - ainda havia coisas do lado de fora dos portões que me davam força para sair de lá e eu desejava ver Zac de novo mais que tudo no mundo. Os Vitta Cells a minha volta vibravam de uma forma estranha e minha percepção estava alterada pelo cansaço, o fluido do mundo parecia mais calmo, quente e confortável ali. Estranho. Como o mundo poderia soar tão agradável de repente em meio a tanta confusão? Algo não fazia sentido ou tinha alguma coisa ali que eu estava deixando passar - ah, aquela vaga e confusa sensação de esperança pairava sobre mim outra vez. Eu deixei a flecha tingida de um vermelho vivo na aljava como se carregá-la fosse minha mais nova missão, coloquei nas costas e levei o arco junto de mim atrás de galhos bons ainda que não tivesse a intenção de usá-lo com ela.

O Labirinto dos DeusesOnde histórias criam vida. Descubra agora