A Tentação de Daniel

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Nós escolhemos nossos caminhos, a cada corredor, a cada decisão, cada curva e cada passo. Escolhemos o que fazer, o que dizer e - o mais importante - de que lado estamos diante do mundo. Não estou falando sobre bem e mal, é mais profundo que isso, é sobre nós mesmos, é sobre o outro. Nossas escolhas dizem quem somos. Nossas escolhas nos levam a nossa redenção. Todo mundo busca seu momento de redenção, o grande auge de sua vida, quando despe-se de todo seu orgulho.

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Seguir em frente era um árduo caminho de aceitação mútua entre você e o mundo, ambos numa disputa de ego e orgulho. Mas nós seguimos, porque foi isso o que Gabriele e Nicolas pediram. Era assim que deveria ser, ela disse, ainda que nossas necessidades do plano físico e palpável se contradissessem. Nós seguimos, porque essa era a lógica do Labirinto, e deixamos os dois para trás embora eu tivesse uma sensação esquisita de que agora eles fossem uma parte intrínseca do Labirinto - mais do que isso, do Mundo. Eu entendia que as coisas eram assim agora, mas havia um vazio que me acompanharia para sempre, eu sentia um duelo dentro de mim entre como as coisas eram e como deveriam ser - a impressão de Gabriele era a nossa realidade mas a minha Gabriele era o que deveria ser, ao menos era isso o que se debatia teimosamente dentro de um buraco que havia nos confins da minha alma; embora ambas fossem na realidade a mesma Gabriele. O fato de que o mundo continuava seu curso natural fazia esse buraco se remexer inteiro num redemoinho de emoções que vez ou outra em intervalos irregulares se fazia presente e, nessas horas, sua voz também se fazia presente em minha mente. Eu fico, Pan, você vai. Meu lugar é aqui. Mas você segue seu caminho e sai. Eu estarei lá de alguma forma para ver você cruzar a porta de saída. Você continua. Nossa relação tinha essa peculiaridade, ela se baseava numa troca de promessas que a gente nunca poderia saber se havia como cumprir - e na maioria das vezes era de fato impossível - uma peculiaridade pura. Naquela época eu aprendi que amizade era o Amor em sua forma mais pura. Era isso o que havia de mais belo em uma amizade.

Eu costumava dizer que o mundo era um lugar difícil, que o Labirinto era um lugar difícil para se estar sozinho e a gente estaria melhor com alguém ao lado. A verdade é que a vida era difícil - talvez fosse obra Dele - e não deveríamos passar por ela sem amigos. Uma peculiaridade essencial a sobrevivência. Eu acredito que a resposta certa para algo é sempre a mais simples, nós complicamos coisas desnecessárias e se passamos pelo mundo sozinhos a gente se deixa levar pelas coisas mais insanas que pairam a nossa volta. As pessoas crescem mas nós nunca estamos preparados para lidar com o ego, orgulho, vaidade, medos e inseguranças sem um porto seguro que nos ancore ao mundo real longe das paranoias que criamos ou acreditamos sem um porque plausível. E, as vezes, tudo que você precisa é despir-se desse invólucro de insanidade do mundo e sentir a alma nua ainda que desprotegida. Eu nunca soube o que me faltou fazer naquele dia e carregaria para sempre essa inquietação, mas nunca me arrependeria por não tentar. É muita pretensão assumir que você possa ser esse porto seguro de alguém de uma hora para outra, mas sempre é tempo de resgatar quem está se afogando imerso em seu próprio caos.

Eu assisti as imagens de Gabriele e Nicolas perderem o foco e se dissiparem, meus olhos atingiram as árvores adiante transpassando o nada onde Gabriele esteve segundos antes e me deixei escorregar para o chão absorta no turbilhão de sentimentos que me anestesiava. Por alguns longos minutos eu ainda encarei o ponto fixo ao longe, divagando sobre o que acontecera, onde meu olhar se alojara em algum ponto entre as múltiplas frequências do mundo - ou do Labirinto? Eu pisquei uma vez, duas e o arco pousado cuidadosamente no chão a minha frente junto do material que eu havia recolhido entrou em meu campo de visão. Num movimento quase mecânico - Naquele momento o mundo havia parado para mim, era mentira mas eu sentia isso. Era mentira, eu sei. Mas ele havia parado. - eu tirei o canivete do bolso, abri ele e estiquei a mão até a pequena pilha de galhos diante de mim. Primeiro eu admirei o exemplar que pegara, o suficiente para visualizar uma flecha em minha mente, então esculpi-o pacientemente até atingir uma textura lisa e perfeita. Em uma das pontas eu prendi uma das pequenas pedrinhas triangulares afiadas e amoladas que carregava na mochila e na outra extremidade eu amarrei cuidadosamente um ornamento de pena branca. Depois de alojar aquela fecha com cuidado dentro da aljava ainda repeti o processo mais algumas vezes exaustivamente com o corpo cansado e os olhos ardendo de sono. A memória vivida de Gabriele e a lembrança de Zac me esperando do lado de fora do Labirinto me motivavam a permanecer com os olhos abertos num trabalho minucioso.

O Labirinto dos DeusesOnde histórias criam vida. Descubra agora