A tarefa de se esconder e ainda assim planejar uma fuga, em um ambiente totalmente controlado por câmeras, vinha se demonstrando mais difícil do que Lara e Jackie imaginaram. As duas nunca tinham certeza de estar fora do ângulo de visão do equipamento e, quando a sensação de estarem sendo vigiadas sumia, tinha algum escravo em volta. O fato era que elas passaram a não confiar em ninguém.
— Jackie... — Tentou falar com normalidade, conforme combinaram durante a noite. — Vou buscar café para nós.
— Obrigada, mestra.
Jackie não se sentia plenamente confiante naquele plano. Ela não queria admitir, mas passara a ter uma voz dentro dela dizendo que seu lugar era onde estava. Apesar de Lara ter tentado convencê-la, relembrá-la de quem era, já não se sentia a mesma. Não sentia o fogo que ardia dentro de si na época das Nightmares. Algo havia mudado.
Comeram em silêncio o breve desjejum que a menina trouxe. Pensou em ir até a cozinha e pegar uma faca escondida, mas não encontrou coragem nem motivos para fazê-lo, uma vez que a comida estava servida na mesa da sala comunal. Esta parte do plano teria que esperar.
Seguindo o plano de disfarce, as duas faziam tudo juntas durante aquele dia. Sabiam que ainda tinha mais um a vencer, mas aquele era o principal. Lara tinha consciência do quão frágil estava a amiga e, desde ir ao banheiro até tomar banho, faziam uma com a outra, e usavam o momento para planejarem.
— Então, — Lara falou em voz baixa, sendo compreendida mais pelo movimento dos lábios do que de fato pelo som, pois o ruído da água do chuveiro abafava a conversa. — Amanhã, por volta das sete da noite vamos ao meu quarto. Espero que a Conselheira não tenha me tirado meu monitor. Quando a virmos começar a o discurso de abertura da reunião, a gente sai e vai direto pra garagem.
— Isso. — Jackie já havia repassado o plano algumas vezes em sua mente, e em todas algo acontecia e ela ficava. — Mas quando eu estive na garagem, naquela vez que nos encontramos, eu não vi nenhum portão. Haviam carros, mas não havia nenhuma indicação de por onde eles entraram ou saíram.
— Mas uma garagem tem que ter um portão, né? — Fez uma pausa e virou-se de costas para a amiga, segurando o cabelo para o lado. — Lava minhas costas?
— Sim, — começou a esfregá-la com suavidade, percorrendo a esponja nos ombros e costas, — mas se tem, eu não sei onde é, nem faço a menor ideia.
— E será que conseguimos entrar nela durante o dia?
— Como, com aqueles gorilas cuidando da porta?
— Tem razão. — Começou a rir quando a água escorreu em suas nádegas. — Desculpe, foi a água. Bem, isso é realmente um problema. E o que mais você lembra da garagem? — Fez um sinal para que Jackie virasse de costas para ela, sendo atendida.
— Bom, eu nem fiquei muito. Vi que era uma garagem, tinha uma limusine, um carro esportivo, e alguns armários fechados. Mas sem portão ou indicações de haver um.
— Teremos que ver isso na ora. — Pegou uma toalha e se enrolou nela, rindo. — Vamos? Vamos ficar murchas se continuarmos debaixo d'água.
— Vamos, mestra.
Jackie apenas sorriu. Aquela última palavra vinha se tornando comum em sua mente, estranhamente comum. Ambas voltaram para o quarto da mais nova. Decidiram manterem-se lá até a hora da execução do plano. Apesar de haver a possibilidade de que a dona do quarto fosse chamada por sua tutora para alguma refeição, seria mais fácil ignorar outros movimentos. Assim, fizeram as refeições e, após muita luta, conseguiram dormir. E, uma vez mais, Jackie sonhou que tentavam fugir e ela ficava para trás.
— Onde vocês duas pensam que vão? — Perguntou a dona da casa saindo da biblioteca logo depois da janta. — Pensei ter dito que as duas estão de castigo.
— Você não pode me manter aqui, Conselheira. Você mesma disse. Eu sou a herdeira da cidade, e estou ordenando que me deixe ir. — Deu a mão para a policial e abriu a porta da garagem, uma luz branca e muito forte vinda do corredor as cegava. — Venha, Jackie, vamos embora desse lugar.
— Jackie, minha criança, — a mulher estendeu a mão e, dobrada sobre ela, uma guia, uma fina corrente brilhava como ouro. — Você quer ir mesmo com essa criança? Você sabe o que a espera lá fora, não? Uma vida de vícios e sofrimentos.
Jackie olhou para a guia, olhou para a mulher. Tocou sua coleira no pescoço; olhou para a mão que segurava a sua e, finalmente, para Lara, quem vinha lhe fazendo companhia nos últimos dias naquele lugar, quem vinha fazendo suportável esses dias.
— Desculpe, mestra Lara. — Lentamente soltou sua mão. — Eu não aguento mais a dor de estar lá fora. Aqui é meu lugar.
Acordou nesse momento, sobressaltada. Por um momento, sentiu um pavor crescente ao não reconhecer o quarto que vinha chamando de seu nos últimos meses. Sentou-se na cama, encostando-se na cabeceira; olhou a garota a seu lado: era Lara. "Aquilo foi apenas um sonho", disse para si mesma. No entanto..., no entanto era um sonho que significava alguma coisa, uma única e importante coisa. Sentiu o coração apertado, mais apertado que jamais sentira, tão apertado que parecia quebrar-se em vários pedaços, e, abraçando-se e mordendo a ponta do travesseiro, sentiu lágrimas desesperadas rolarem por seu rosto.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Crônicas de Rat's Bay - Jackie Aeon
ActionCrônicas de Rat's Bay é uma distopia sombria e profunda, um mergulho ao que há de pior e mais podre no coração humano. Em uma cidade dominada pela corrupção, Jackie Aeon é uma jovem detetive. Sua missão, entretanto, não é fácil: ela precisa se infil...