Os antigos contam muitos causos de assombração, narrando fatos e feitos de um tempo que já se perdeu no passado, mas cujas presenças ainda podem ser sentidas no respeito do povo e no temor velado com que tratam o assunto. Conhecem a maioria das propriedades da região e sabem a história de cada uma. Algumas são histórias de felicidade e harmonia, enquanto outras são histórias de tragédias e desespero, trazendo à tona o pior do ser humano e, ao mesmo tempo, ressaltando a fatalidade com que o destino trata pessoas más e perversas.
A Casa do Capeta é um bom exemplo disso. Hoje é uma velha construção em ruínas, abandonada no alto de um morro, no centro de uma vasta propriedade onde se planta soja e trigo. Em outros tempos, ali se plantava café e até onde a vista alcançava, estendia-se o verde da planta. No tempo das floradas, o perfume das flores permanecia no ar, reforçando o clima de fertilidade e paz que reinava naquela fazenda.
A fartura, porém, chegou ao fim com as grandes geadas, que devastaram os cafezais, deixando a terra nua. Numa delas, em desespero, o proprietário da fazenda passou a noite toda rezando, pedindo a Deus que poupasse seu cafezal.
— Juro construir uma capela com um altar de ouro se meu cafezal não se perder – prometeu ele, desfiando contas do seu rosário.
A natureza foi inclemente e, quando amanheceu, a tragédia se anunciava na plantação, com os ponteiros queimados anunciando a perda total da lavoura. De desgosto, o velho fazendeiro se trancou no quarto, com um garrafão de cachaça, e bebeu o dia inteiro. Quando anoiteceu, ele saiu do quarto, bêbado, e foi para o terreiro. Ali gritou para todos ouvirem:
— Já que Deus não quis a minha capela, eu dou minha casa para o capeta! De hoje em diante, o coisa-ruim mora aqui!
Mal terminou de dizer isso, sofreu um ataque de coração e caiu ali mesmo, morto. A família manteve segredo do acontecido e, tão logo foi possível, pôs a propriedade à venda. Naquele tempo, gaúchos estavam comprando terras para plantar soja e trigo, mecanizando a lavoura. Em pouco tempo a fazenda foi vendida e começaram os trabalhos de erradicação do café.
A casa da fazenda, antigamente um modelo de luxo e conforto, foi transformada em abrigo para os peões e motoristas. Camas improvisadas espalhavam-se pelos quartos e era intenso o movimento. Durante o dia e parte da noite. Às dez horas, porém, todos já dormiam, extenuados após mais um dia de trabalho duro.
No começo, nada se percebeu de anormal. De repente, porém, numa sexta-feira, à meia-noite em ponto, ouviram-se fortes batidas na porta. Foi uma reclamação geral e o capataz se levantou, furioso, para ver quem batia daquela forma. Ao abrir a porta, no entanto, ninguém se apresentou.
— Diabo de brincadeira besta, siô. Se eu pego o mardito que anda fazendo isso, eu quebro ele de pau! – prometeu.
No dia seguinte, tentaram encontrar quem fizera a brincadeira, mas ele não foi encontrado. Tudo voltou ao normal, mas na sexta-feira seguinte, à meia-noite, as batidas se repetiram. O capaz tratou de acordar alguns homens, mandando que saíssem por uma janela e dessem a volta na casa para surpreender o brincalhão. Ele mesmo foi abrir a porta, então.
Para sua surpresa de novo, ao abrir a porta, imediatamente após novas batidas, deu de cara com os homens que mandara sair pela janela.
— Viram o mardito? – indagou ele.
— Num vimo ninguém.
— Então é o Cão querendo entra na casa. Se é isso que ocê que, mardiçoado, não faça cerimônia. Pode entra que a casa é sua!
Mal acabou de dizer isso, ouviu-se uma gritaria, vindo de um dos quartos. Aos gritos se seguiram alguns tiros.
— Danação! – gritou o capataz, correndo para lá.
Lá dentro, os homens estavam escondidos debaixo de suas camas, dando tiros a esmo.
— Pára com isso, seus doidos! Vão se mata. Que que tá havendo aqui?
— É um cachorro...
— Um cachorro do tamanho dum bezerro...
— Ta aqui dentro ainda...
— Os óios briavam que nem brasa...
Lamparinas e lampiões foram acesos, mas nada de se encontrar o tal cachorro. Os homens ficaram apavorados e demoraram a voltar a dormir naquela noite.
Quando foi no dia seguinte, deram uma nova busca na casa. Foi então que viram, na porta de entrada, marcas como se as garras de um animal muito forte tivessem lascado a madeira.
— Isso é coisa do capeta – comentou alguém.
— Se é coisa do capeta, vamos chamá um padre pra benzê o lugar – decidiu o capataz.
O vigário da cidade foi chamado. Não só benzeu cômodo por cômodo, como também rezou uma missa na sala principal da casa. Tudo voltou ao normal, mas, quando se aproximava a sexta-feira, uma inquietação incomum tomou conta dos homens da casa.
— Eu num vô fica aqui pra topá com o Cão mais uma vez – disse um deles, disposto a dormir na carroceria de um caminhão.
— Pois vamos fazê mió. Nóis se esconde lá fora, na frente da casa, e vamo vê se o capeta aparece – propôs o capataz e todos gostaram da idéia.
Naquela noite, os tratores e caminhões foram enfileirados diante da casa, com os faróis voltados para a porta. Se alguém surgisse, todos acenderiam as luzes, pegando em flagrante o brincalhão, se é que havia algum. Quando foi meia-noite, no entanto, começaram a ouvir um tropel danado dentro da casa, como se uma boiada corresse sobre os assoalhos. Ao mesmo tempo, uivos tenebrosos de um cachorro se sobrepunham a todo o barulho.
Os homens começaram a se persignar e a rezar.
— Acende as luz! – gritou o capataz.
Quando as luzes foram acesas, todo o barulho cessou. Apenas o ruído do vento, arrastando folhas secas no chão, permaneceu. O capataz se encheu de coragem. Empunhou um revólver na mão direita e um facão na esquerda.
— Quem for macho, vem comigo! – disse ele, avançando para a porta.
Alguns homens o seguiram. Pararam diante da entrada. Reunindo toda a coragem que tinham, chutaram a porta, abrindo-a. Na no fundo da sala, no pé da escada, sentado como se fosse um rei em seu trono, estava um enorme cachorro preto. Os homens ficaram estáticos, incapazes de se moverem. Quando o cachorro se ergueu, uivou furiosamente e avançou na direção deles, desembestaram dali, seguidos pelos outros, cada um mais desesperado do que o outro.
Só três dias depois os homens puderam ser reunidos novamente. Ninguém queria mais trabalhar ali. Tanto que os novos proprietários da fazenda mandaram que os tratores fossem usados para demolir a casa. Mas, quando as máquinas se aproximavam do terreiro, os motores começavam a ratear e afogavam.
Uma cerca de arame farpado foi construída, então, ao redor da casa. O restante da propriedade foi mecanizado e cultivado. A casa permaneceu ali, desocupada, estragando-se com o tempo. De vez em quando, um doido qualquer resolve desafiar o capeta e se aproximar da casa, para mostrar sua coragem. Poucos conseguem passar a cerca de arame farpado. Muitos ficaram aluados. Alguns perderam a vida.
— O capeta inda mora ali – assegura o velho. – E digo isso porque vi com estes óios que a terra há de comê. Falo porque eu era o capataz daquela fazenda!

VOCÊ ESTÁ LENDO
CONTOS DO MAGO DAS LETRAS
Short StorySituações inusitadas, cidade e sertão, polícia e pescaria, fantasmas e fadas, personagens surpreendentes, todos se reúnem em um tempo indefinido na visão do Mago das Letras. Contos para ler sem remorso, talvez com um pouco de humor ou um toque fantá...