Onde meter a máquina dos meus ideais
naquele mundo de brutalidade,
que me intimidava com os obscuros
detalhes e as perspectivas informes,
escapando à investigação da minha
inexperiência? (Raul Pompéia in O Ateneu)
Noite. Quase hora de fechar. Chegou Laurindo, já bêbado, após sua via-sacra pelos botecos da cidade, iniciada no primeiro deles, na saída para Londrina, e descendo a avenida, até o último deles, abaixo da linha férrea, na saída para Rancho Alegre. Sina repetida todo sábado, desde que perdera a noiva. Casamento marcado. Dívidas feitas. Confiante na promessa do patrão. Não deu certo. Pena! Escrevia versos. Tão bons que poucos acreditavam que fossem deles. Depois, para completar a tragédia, Anita, a ex-noiva, morreu precocemente.
— E daí, Laurindo?
— Indo.
— Cachaça e cerveja?
— É.
Foi servido. Apanhou os copos e a garrafa e foi se sentar num caixote a um canto. O vozerio dos bêbados no armazém não o incomodava. Tinha mundo próprio.
Tirou a caneta e um caderninho do bolso. Abriu. Bebeu um gole de cachaça e um de cerveja por cima. Ar pensativo, olhando as tesouras de madeira do teto, começou a compor mais um soneto.
* * *
O vento, entrando pela porta, levantou papéis e os atirou no assoalho. Uns caíram imóveis. Outros escorregaram para debaixo dos móveis. Sem deixar a cadeira, inclinou-se e puxou-os com as pontas dos dedos. Retornou-os ao local de origem. Ficou examinando a superfície da mesa. À esquerda, a caixa de entrada de documentos da contabilidade. Ao centro, ainda com a última folha do Diário e uma do Razão introduzidas no aparelho, a máquina de contabilidade. À direita, o aparelho intercomunicador sobre livros de legislação trabalhista, tributária e uma lista telefônica. Espalhados aqui e ali, o vidro de cola, o grampeador, o perfurador e alguns blocos em branco de fichas de lançamento. Teve vontade de empurrar tudo para fora dali.
Havia chegado do almoço. Tomara um aperitivo com os colegas e sentia, após a caminhada de volta, aquela moleza cachorra infiltrar-se pelos seus músculos cansados. Era pouco mais de uma hora da tarde. Os outros ainda não haviam chegado. Fazia silêncio no escritório.
Continuou pensativo. De repente, empurrou a cadeira para trás para abrir a gaveta do centro e examinar os papéis em seu interior. Não encontrou o que procurava. Fechou-a e abriu a primeira gaveta da direita. Não era. Ali só estavam as fichas de controle de vendas e de comissões dos vendedores. Na segunda achou os livros de ICM, IPI e Registro de Duplicatas. Na terceira, bem lá no fundo, encontrou, finalmente, o que buscava.
Era um pequeno bloco de rascunho, com folhas desiguais, presas a uma capa de cartolina azul, já meio desbotada e com manchas de suor.
Abriu-o. Começou a ler o primeiro soneto.
O tempo passa, carregando a vida,
vem a velhice, vai nos transformar;
tudo mudando, também vai mudar
teu corpo e o meu, pobre de nós, querida!
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CONTOS DO MAGO DAS LETRAS
ContoSituações inusitadas, cidade e sertão, polícia e pescaria, fantasmas e fadas, personagens surpreendentes, todos se reúnem em um tempo indefinido na visão do Mago das Letras. Contos para ler sem remorso, talvez com um pouco de humor ou um toque fantá...