JUCÃO

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I - Jucão

Deus, por sua força, prolonga os dias dos valentes; veem-se eles de pé quando desesperavam da vida. Ele lhes dá descanso, e nisso se estribam; os olhos de Deus estão nos caminhos deles. São exaltados por breve tempo;depois passam, colhidos como todos os mais; são cortados como as pontas das espigas. (Jó 24:22-24)

O avô deu um safanão em Jucão, parado junto ao balcão. O rapaz apanhou o saco de compras com facilidade e levou-o para a carroça.

— Agora cê fica aqui, quentando sol, que eu vou ali e não demoro.

O rapaz concordou docilmente e foi se sentar numa das portas do armazém. De lá de dentro vinha o som de um trio afinado, desfiando modas de viola. Ele encostou a cabeça na madeira do batente e ficou olhando o sanfoneiro, o violeiro e o pandeirista. Contagiado pelo ritmo, começou a batucar com a mão direita sobre o cimento. O polegar destacava-se grotescamente na mão sem dedos.

* * *

Jucão tinha perto de dois metros de altura, era manco e feio. Aos seis anos, caiu do galho alto de uma laranjeira, estropiou uma perna e sofreu uma lesão cerebral. Aos quatorze, levou uma surra de argola de laço que deixou marcas em sua cabeça. Aos dezesseis, no dia de sua primeira comunhão, queimou o rosto com uma vela e caiu da escadaria da igreja. Aos vinte, apanhou de porrete de um cabo de polícia e, após curar-se, estava pronto para a vida.

Quem o visse aos vinte e dois anos, colhendo flores para engrinaldar os santos do altar familiar, nem de perto imaginava o que se passava naquela cabeça maltratada.

Caído aos pés do altar, fitando as imagens que pareciam mover-se com as chamas das velas, Jucão sonhava épicos lances religiosos. Tantas vezes salvara São Sebastião das flechas mortais do cabo de polícia, enfrentando-o com o porrete de Moisés. Ajudara na construção da Torre de Babel na laranjeira. Quando Deus misturou as línguas, ele caiu de um andaime. Salvara um cristão de morrer queimado na arena de Nero. De todas, porém, sua preferida era ajudar Davi a enfrentar Golias com a argola de laço. E sempre que revivia seus atos de heroísmo religioso, passava as mãos pelo corpo e mostrava aos santos impassíveis as provas de seus feitos.

Seus passatempos preferidos eram ouvir o avô contar estórias da Bíblia, Novo e Velho Testamentos, ler os livrinhos da coleção Os Mártires de Cristo, trazer água do poço, na baixada, até o quinto da cozinha e ver os maquineiros perderem as mãos nas máquinas de rami do sítio do vizinho.

— Vô, máquina de rami é que nem queixada de Sansão?

— Peor, Juquinha, peor. Queixada de Sansão é coisa de Deus, coisa de ajudar os homens de fé. Máquina, não. Máquina é judiação que os homens fazem pros outros homens.

— E por que Deus não manda uma chuva de fogo que nem de sodomigomorra queimar tudo que é máquina de rami?

— Nundianta, Juquinha, nundianta! Os homens fazem mais...

— Vô, ontem eu sonhi que Deus falou para mim quebrar as máquinas do seu Joaquim...

— Nuncridita, Juquinha, nuncridita! Isso é tentação. Reza, meu filho, reza!

Quando buscava água no poço, enquanto o balde descia, girando perigosamente o cambito, Jucão observava as árvores ao redor, em busca de um porrete de Moisés. Um dia encontraria um igual. Então não mais precisaria fazer força para levar a água morro acima. Bastaria um gesto do cajado mágico e as águas do poço subiriam milagrosamente até encher o quinto. Um dia ainda o encontraria. E de novo o gesto de Moisés iria repetir-se e as águas do Mar Vermelho se abririam. E quando o cabo de polícia viesse...

CONTOS DO MAGO DAS LETRASOnde histórias criam vida. Descubra agora