O MAQUINEIRO

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Pois o homem não sabe a sua hora.
Como os peixes que se apanham com
a rede traiçoeira, e como os pássaros
que se prendem com o laço, assim se
enreda também o homem, no tempo da
calamidade.(Ecl.9,12)

Mal as portas do armazém do velho Nicolau se abriram, Nório da Silva entrou na frente de todos, piscando firme os olhos apimentados para tirar a fumaça. A cachaça já o esperava sobre o balcão. Era velho conhecido. Sorrindo, ele emborcou seu desjejum.

A tremedeira do corpo foi cessando à medida em que a bebida punha calor aguerrido em seu corpo castigado. Sentiu, então, a mão firme. Levantou de novo o copo e tragou o resto. Não fez caretas. Havia muito deixara de fazê-las. Apenas uma crispação nos músculos da face, maior no primeiro gole, imperceptível no segundo.

O dia estava azul e o céu sem nuvens, apesar do calor e do cheiro inconfundível de chuva no ar. Uma brisa de começo de dia quase nem conseguia levantar a poeira da rua. Logo o caminhão aguador passaria, caso não quebrasse antes, molhando a rua, até a ponte do Pirianito, na baixada.

Nório limpou a boca sempre sorridente, onde dois caninos de ouro luziam. Olhou para os lados. Nos balcões amontoavam-se homens rudes, mas educados a sua maneira, com um vocabulário próprio e econômico. Mais tarde, nas rodinhas de cachaça, saberiam ser tagarelas. Por enquanto, junto ao balcão, ostentavam ares de acuados e esmeravam-se no apressado diálogo feito de frases curtas.

– Farinha?

– Tem.

– Quanto?

– Tanto.

– Boa?

– Daqui mesmo. Bem sequinha. Recebida ontem.

– Dois quilos. Jabá?

– Tem.

– ...

Nório já tomara três doses. Era fácil embebedar-se aos sábados. Bastava aceitar convites, que vinham fáceis. Logo ficava alto e cantava a cantiga de um verso só, desconhecida, em voz de carpideira, deixando em suspenso o final, à espera do verso seguinte, da continuação que nunca vinha. Desde a primeira vez em que a ouviram por aquelas bandas, a cantiga fora sempre a mesma, repetida mil e uma vezes durante o dia, enquanto o sono final da cachaça não o derrubasse a um canto qualquer. Mesmo dormindo, murmurava ora meio verso inicial, ora o final, ora o meio:

Cada folha que cai é o povo...

O MENINO

Havia passado das cinco doses, menos de meia hora depois de sua entrada. Como de costume, foi sentar-se na porta do armazém para cabecear um pouco.

Na rua, carroções, carroças e carretas passavam, dividindo espaço com os veículos a gasolina que resfolegavam lépidos numa nuvem de poeira, para alegria e alvoroço da criançada, que agora reunia-se ao redor do caminhão de água, quebrado a pouca distância do rio, onde abastecia-se.

Nório acompanhou de longe, com interesse, o esforço. A meninada ajudou a empurrar o veículo. O motor rateou. Depois, em fortes e altas aceleradas, ganhou velocidade, fez o contorno e subiu a rua esfumaçando-se.

As crianças dispersaram-se. Algumas passaram correndo diante do armazém. Uma delas parou. Olhou Nório da Silva que balbuciava sua cantilena e aproximou-se.

– Oi, seu Nório da Silva!

– Oi, menino! Cê tá aqui?

A figura sempre sorridente do bêbado atraía o garoto. Conversavam conversa de criança e de bêbado. O menino sentava-se ao lado dele, fazia perguntas e contava suas descobertas.

CONTOS DO MAGO DAS LETRASOnde histórias criam vida. Descubra agora