INCERTEZA

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     — Puxa vida, hoje está frio! — disse ele, firmando o roto paletó sobre o corpo estremecido pelos arrepios constantes.

A cidade toda se abrigava contra o inverno em grossos capotes de lã.

— É uma belezura olhar essas vitrinas. Tem cada coisa... Ainda há pouco vi um casaco de lã que vou te contar, Pedro velho. Deve ser quentinho, quentinho!

O sol acabava de se esconder no horizonte e lia-se nos olhos da noite que chegava o prenúncio de muito frio.

— Se eu pudesse comprar ao menos uma blusinha de lã, acho que não ficava mais com frio.

As pessoas corriam anônimas pelas ruas abrigando-se em vistosos casacos ou em blusas quentes.

— Mas como é que eu faço, se não tenho dinheiro?

Todos, encolhidos em seus abrigos, buscavam divertir-se na noite de um sábado que chegava com promessas de domingo e descanso.

— Pudera, a gente não arruma trabalho, não tem a quem recorrer, fazer o quê?

Uns iam para o cinema, outros para o teatro, enquanto outros biscateavam: ainda era cedo para a boate.

— O negocio é recorrer a Deus e pedir pouco frio e reforço para este meu pobre paletozinho judiado.

No meio da multidão que passava, todos eram desconhecidos. Raramente uma ou outra mão se levantava para saudar uma outra ao longe. Algumas, mesmo reconhecendo um amigo à distância, escondiam-se de frio. O gesto não valia a pena. Era nesse mundo que Pedro estava jogado. Pedro e outros Pedros anônimos.

— É, hoje não sei o que faço. Debaixo da ponte não dá mais para dormir. Ainda ontem a guardaiada —ah, recaiada miserável! Eles tinham o dele, por que tirar o da gente? — tinha botado todo mundo para correr. Judiação!

Pedro não tinha família. Mudara-se para a cidade grande porque lá onde estava não dava mais para agüentar a vida. A saúde estava ruim, ele sofria dos pulmões. Encontrou uma carona e viajou, deixando sofrimentos e recordações na terra ressequida que abandonava.

— Se eu tivesse um dinheirinho dava para dormir lá na pensão. Mas, o pouco que restou só deu para o café.

A principio, cheio de esperanças e de vontade de trabalhar, ganhar seu dinheiro e curar-se, Pedro não sofria. Depois, o trabalho pesado dia a dia mais o definhava. O pouco que ganhava não dava para muito luxo e, por fim, a briga no serviço e o desemprego.

— É, o negócio é juntar uns jornais e dar um jeito de se camuflar nalgum banco de praça e rezar para a guarda não me apanhar e eu não morrer de frio.

Hoje o pouco dinheiro que lhe restava havia terminado. Não conseguiu um novo emprego porque a tal da abreugrafia danava tudo. Ele estava positivo, mas fugia do tratamento. Era um bom sujeito, honesto e orgulhoso. Não queria nada de graça. Confiava no seu trabalho honrado e não aceitaria auxílio, enquanto estivesse com saúde. Pobre dele! Mal sabia que seu orgulho morreria com a chegada do frio.

— Saudade da pensãozinha da dona Ana... Era escavacada, mas a gente não passava frio. E até que eu não posso achar ruim com ela por me mandar embora. Eu não tinha dinheiro...

Pedro vagava pelas avenidas. Quantas vitrines, quanta coisa bonita e quente! Seu corpo tremia. Era impossível controlar aquele bater incessante de ossos friorentos.

— Safado do Joaquim: roubar minha comida não foi nada: o duro foi dar de dedo-duro e mentir para o patrão me mandar embora. Se ele pedisse, eu dava a comida, mas roubar... Mas coitado do Joaquim: tem mulher e seis filhos, vida dura...

Nas vitrines, as ofertas de inverno tentavam os olhos ávidos e o corpo com frio de Pedro. Casacos, blusões, blusas, quentes e caras, caras e quentes, enchiam seus olhos de lágrimas de tristeza.

— É triste ser pobre. É duro passar frio, mas, meu Deus, confio no Senhor. Sei que não vou morrer assim, sem lutar, jogado à mingua, traste velho nalgum banco de praça.

Dos bueiros, um bafo de calor vez ou outra aquecia-lhe temporariamente o corpo: que fedor! Uma neblina fina e uma garoa triste umedeciam-lhe os cabelos despenteados.

— É, cada vez esfria mais. Daqui a pouco não vai ter quem agüente esse frio danado. Eh, minha terrinha: tu era triste mas quentinha!

Uma loja exibia na vitrine uma iluminada coleção de inverno. E vendia à prestação. Pedro deteve-se na contemplação daquela belezura, sentindo-se intimamente aquecido, esquecendo-se temporariamente do tremor de frio. Ao lado dessa loja, uma outra exibia móveis de todos os tipos: jogo de quarto, colchão de mola, colchão or-to-pé-di-co — ele teve de soletrar, sua leitura era fraca — e colchas de...

— É, Pedro, meu velho, isso aí não é para você. Olhe os preços, Pedro, olhe os preços. Quando é que nós vamos poder pagar aqueles preços?

E ele se afastou tristonho. Biscateou mais um pouquinho pelas avenidas, vendo os bares e os restaurantes, com coisas deliciosas, coisas de comer. E Pedro estava com fome. Desde cedo não comia nada. E o frio. Cada minuto era um grau abaixo, cada grau um arrepio, cada arrepio um tremor a mais.

— Pedro velho, não adianta se curtir assim. Essa comida não é para você, assim como não é aquele cobertor bacana, aquele colchão gozado. Pra você é deitar-se num banco e esperar que um anjo venha lhe cobrir de calor. O negócio é dormir, Pedro, dormindo se esquece de tudo, tudo...

Nem jornal a cidade grande lhe deu nessa noite. Só restou mesmo encolher-se sobre um banco. Encolhido era melhor, esquentava mais.

— Pe-dro ve-lho, pá-ra de tre-mer. Guen-ta a mão que Deus te aju-da. Quem sa-be um an-jo ve-nha te co-brir...

E enquanto o biscateiro aproveitava a hora, rumando para a boate, quem saía do cinema e dos teatros, agasalhados, tomavam seus carros ou um circular para casa onde se encolheriam quentinhos sob os cobertores. Pedro fechou os olhos e esperou, tremendo, a incerteza fria abater-se sobre ele.

—Quem sa-be um an-jo, Pe-dro ve-lho... Quem sa-be...    

CONTOS DO MAGO DAS LETRASOnde histórias criam vida. Descubra agora