O TERCEIRO TIRO

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O advogado de defesa era uma raposa velha dos tribunais e montara uma história que era plausível, diante das provas levantadas. Segundo ele, o acusado disparara contra a vítima duas vezes, sem matá-la, afastando-se em seguida e dando respaldo a uma tese de legítima defesa. Só que a vítima apresentava três ferimentos: um no braço direito, um no ombro e outro no centro da testa, o que lhe causara a morte. No local foram encontrados apenas dois projéteis, muito danificados .

— A tese da defesa tem fundamento. Precisamos encontrar a arma do crime e confirmar se ele disparou apenas duas vezes — insistia o promotor, valendo-se da experiência em casos semelhantes.

— Segundo ele, o revólver foi jogado numa lata de lixo. Deve estar agora soterrado por toneladas de entulhos lá no lixão — ponderou um de seus auxiliares.

— Temos que tentar. É a única forma de elucidar isso, já que o terceiro projétil vai ser impossível. Simplesmente sumiu.

— Podemos usar aquele pessoal que garimpa lá no lixão... Pode ser que encontrem essa arma... — sugeriu alguém.

— Há uma chance e temos que tentar de tudo... — decidiu ele.

A notícia foi espalhada. Alguém estava pagando cem dólares por uma arma encontrada no lixão. Logo no primeiro dia, foram encontrados três revólveres. Um estava vazio, outro tinha três cápsulas apenas, todas deflagradas e o terceiro tinha duas cápsulas deflagradas e outras quatro intactas.

O acusado foi convocado para novo depoimento e compareceu, juntamente com seu advogado. Sobre a mesa, as três armas.

— Aquele é meu revólver — apontou ele, sem hesitar, indicando a arma que continha duas cápsulas deflagradas.

— Tem certeza?

— Absoluta. Pode ver no cabo, há uma pequena marca, em forma de cruz, que fiz para não confundí-la com as dos outros, no estande de tiros, onde pratico.

— Como pode ver, promotor, meu cliente falava a verdade desde o início. Ele agiu em legítima defesa, pois sabia manusear a arma e, se quisesse, poderia ter matado, mas não o fez. Deixou a vítima ferida e esta, com certeza, na seqüência, foi morta por uma outra pessoa, que preparou a cena do crime. Isso fica visível no fato de não ter sido encontrado o terceiro projétil, não é?

— Pode repetir como tudo aconteceu? — indagou o promotor ao acusado, enquanto pensava no assunto.

— Não vejo necessidade disso — cortou-o o advogado.

— Tudo bem, eu não vejo motivos para me negar a ajudar a justiça. Como eu disse, eu estava naquele local porque fui levar uma amiga a sua casa. Quando voltava para o carro, esse indivíduo apareceu na minha frente, com uma faca. Não esperei que ele se aproximasse. Saquei a arma e apontei para ele, mas ele continuou vindo em minha direção. Disparei um tiro para desarmá-lo e outro no seu ombro, para pará-lo. Ele recuou e eu fui para o carro e saí. No caminho, assustado, joguei a arma num latão de lixo e foi tudo. Se eu quisesse poderia tê-lo matado. Ainda tinha mais três balas no meu revólver e poderia tê-las disparado, mas não o fiz.

Mais tarde, em seu gabinete, o promotor pensava no assunto. Tinha uma teoria a respeito daquele caso, pois sabia dos antecedentes do acusado. Tinha um histórico de violência e uma ficha criminal extensa. Era traficante de drogas e, ultimamente, segundo seus informantes, vinha tentando expandir sua zona de atuação. A vítima era também um traficante que controlava aquela região e, com certeza, fora morto porque se negara a negociar seus pontos de venda.

Não podia, porém, ir ao júri com essa tese, sem maiores provas. Estava de mãos atadas e teria de permitir que um traficante e assassino continuasse nas ruas, vendendo sua mercadoria perniciosa. Isso o preocupava muito, principalmente quando pensava em seus filhos e nos filhos das demais famílias da cidade.

Naquela tarde, quando voltou para casa, seu filho o esperava para brincar de mocinho e bandido, usando pistolas de água. Foi trocar de roupas, pôr o velho agasalho esportivo e o tênis. Momentos mais tarde estava no quintal, procurando um bom esconderijo. Esperou que o filho fosse a sua procura. Viu-o se aproximando. Ficou imóvel. Quando o garoto chegou bem perto, levantou-se e apontou-lhe a pistola de água. Num gesto instintivo, o garoto levantou o braço diante do rosto e recebeu uma infinidade de jatos de água fria. Defendeu-se, disparando de volta e logo estavam ensopados.

— Tempo, pai! Tempo! — gritou o garoto. — Preciso recarregar. Minha munição acabou — acrescentou o menino.

O promotor ficou imóvel, revivendo toda a cena.

Naquela mesma noite, o acusado foi chamado para um novo depoimento e chegou com seu advogado, desta vez esbravejando.

— Isso tem que ter um fim. Meu cliente não pode ficar a sua disposição vinte e quatro horas por dia...

— Seu cliente está sendo acusado de assassinato e vai ficar detido, até que o juiz determine a fiança.

Advogado e cliente ficaram lívidos e perplexos.

—Não houve terceiro tiro — continuou ele. — O mesmo tiro que atingiu o braço,atingiu também o ombro, quando a vítima tentou se proteger da agressão. O segundo tiro foi disparado friamente, como numa execução, para matar, o que invalida a tese de legítima defesa. E, diga-se de passagem, seu cliente provou ser um mentiroso ao dizer que entende de armas e ao reconhecer aquele revólver como dele. É uma arma de seis tiros, não de cinco, como ele afirmou.    

CONTOS DO MAGO DAS LETRASOnde histórias criam vida. Descubra agora