A GEADA

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Lá longe, nos confins deste Brasil, onde o verde do rami se confundia com o azul do céu; lá onde a brisa do entardecer oscilava os caules da planta, imitando ondas do mar, havia um sítio. Nele, deteriorando a paisagem verde, erguia-se, tosca e vacilante, uma casinha de pau-a-pique. Nessa casinha paupérrima morava Seu Joaquim. Era mal coberta de sapé, com móveis rudes, grosseiros, toda ela capenga, pensa, desafiando a lei da gravidade e as intempéries da natureza. Luz era o sol desde a manhã, entrando pelas frestas, e o lampião à noite, enegrecendo a parede, tremulando na escuridão. Não tinha rádio. Um a pilhas não dava para comprar, nunca deu, talvez um dia ainda desse. Seu Joaquim amava sua casa, sua mulher, a filha, mas, acima de tudo isso, amava a sua vermelha, às vezes ressequida, às vezes encharcada, produtível e estéril terra. Seu pedaço de chão onde semeava ilusões e sonhos, colhendo, na maioria das vezes, pesadelos e desilusões. Era sua. Juntou dinheiro como meeiro de café. Comprou na pechincha. Plantou rami. Colheita rápida e boa.

Na casa ficavam sua mulher e a filha, arrumando, costurando, preparando as coisas, esfregando os olhos inchados e vermelhos de assoprar fumaça no fogão de lenha. Na roça, de manhã à noitinha, ficava Seu Joaquim, tocando sua lavoura, contra tudo e contra todos, até que um dia a natureza, tão amiga e inimiga, apresentou-se mais dura, mais implacável do que nunca: uma geada.

— Desta vez não, não pode gear — foi o lamento que passou continuamente pela cabeça do pobre homem.

Era triste. A planta estava perfeita, quase madura e pronta para o corte. Mais uma semana ou duas que fosse e tudo estaria terminado. Com a planta colhida e armazenada, mais nada ele temeria. Porém, ameaçador, o tempo não parecia compartilhar com ele tais planos. Além do mais, não parecia nada amigável nem prestimoso. Inesperado, ameaçava todo o fruto de uma longa espera, de um mar de lutas, de mil gotas salgadas, de todo o trabalho de uma estação.

— Olha, mulher, — dizia ele voltando para casa, suor a banhar o rosto moreno — aquele pedaço de chão ainda vai acabar comigo.

— Por quê? Que foi dessa vez? — perguntava ela, solícita, submissa, olhos vermelhos e inchados de assoprar fumaça no fogão de lenha.

Num dia era o arado quebrado, noutro a enxada cegando o corte, um tronco mais encravado, uma pedra das grandes, quando não fosse a tonteira da fome, do cansaço, do sol, que o prostrava contemplativo à uma sombra qualquer, fitando a terra vermelha recém-aberta, o reluzir do suor nos pêlos negros do cavalo ou o rebrilhar do sol na lâmina do arado. Foi nessas horas que aprendeu a conversar com as plantas. Contava seus problemas e ouvia promessas infinitas de farturas sem fim. Sua vida era uma luta sem tréguas, entremeada de suor, de esperança de batalhas vencidas à custa de sacrifícios.

E agora ali estava ela, a planta conversadora, alheia aos seus problemas, verde e bonita, assistindo impassível ao sofrimento do homem. Seu Joaquim não lhes contou sobre a geada. Como poderia fazê-lo? Como dizer-lhes que estavam condenadas? Como lágrimas nos olhos, procurou esconder isso. Um milagre poderia acontecer. Ele tinha de confiar nisso. Custara para ele vê-las assim, verdes e bonitas. Quanto custava agora sabê-las condenadas? A espera era uma luta, e ele se agarrava à esperança de um milagre como sua única defesa. Careciam de cobertores que somente a planta poderia dar. Estômagos rosnavam na expectativa de mais um longo racionamento. A planta era o festim, mas a geada, a escassez dos alimentos.

— Pai! — suplicou a filha, olhos tristes, ossos dançando sob a pele. — O senhor, compra aquele vestido de bolinhas pra mim?

— Compro, filha, mais pra frente. Agora eu preciso de uma enxada nova que a velha já quebrou — respondeu ele escondendo os olhos vermelhos e a vontade de chorar.

CONTOS DO MAGO DAS LETRASOnde histórias criam vida. Descubra agora