IN-DECISÃO

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Era-lhe presente aquela necessidade de encontrar-se dentro do absurdo da vida. Era simplesmente impossível continuar naquela subsistência sem começo nem fim, sem rumo, sem razão, sem nada.

Levantou-se pesaroso e, abrindo a janela, enfrentou a escuridão da noite. Seria bom — pensou ele — se ao abrir a janela não sentisse a decepção da escuridão e, sim, a alegria da claridade. Seria melhor ainda se em sua vida existisse uma janela como aquela que, com um simples gesto, se abrisse e o inundasse na luz de um risonho amanhecer. Mas, não. Sua vida era uma constante prisão, sem portas nem janelas, sem sol, sem sonhos, sem ilusões, sem nada.

Fitou a escuridão da noite e desesperou-se. Que fazer, meu Deus, que fazer?

Num acesso de raiva, fechou violentamente a janela. Depois, quase que arrependido, foi lentamente abrindo-a novamente e gozando o frescor da noite que lhe acariciou o corpo. A lua, brincando de esconde-esconde com as nuvens, iluminou-lhe o rosto em beijos de claridade, antes de retornar a sua brincadeira. Um calendário na parede ao seu lado marcava em vermelho: domingo.

E o que é o domingo? — pensou. — Um dia feliz, descanso, tranqüilidade? Não, não e não! — chegou quase a gritar. — Meu domingo é fazer as mesmas coisas, no mesmo bar, com os mesmos amigos, na mesma bebedeira de sempre que não me leva a nada.

O domingo sempre trazia-lhe as mesmas reflexões que se dissipavam na lassidão da segunda-feira. Nos domingos fazia planos que ruíam no início do dia seguinte.

Sentiu um grande desânimo. Talvez da ressaca, talvez de viver. A vontade de diluir-se no espaço, de tornar-se um raio de luz, invadiu-o de repente, mas o gosto amargo da bebida em sua boca mostrou que não era tão puro para almejar uma coisa dessas.

Vagarosamente voltou-se e foi até o banheiro. Se ao menos tudo fosse diferente! Que falta ela me faz!

Olhou-se no espelho e espantou-se com as olheiras que marcavam-lhe o rosto. Se ao menos tudo fosse diferente, mas hoje foi domingo e o que é o domingo? Tudo igual, tudo igual!

Olhou o relógio e pesou-lhe saber-se escravo de um simples mecanismo. Amanhã será segunda-feira e o serviço me espera. Amanhã tudo vai recomeçar!

Doeu-lhe saber que a via sacra do correr da semana não o conduziria ao altar das realizações e, sim, a um constante encontro com suas desilusões. Sentiu seu corpo vacilar. Uma vertigem abalou-o. Lentamente, apoiado no fantasma das suas ilusões, voltou para cama.

Revirava-se no leito. Lá fora as nuvens ainda brincavam com a lua. Um vento triste arrastava folhas pelo chão e assobiava nos fios, balançando-os. Ó vida miserável, porque tens de ser sempre a mesma porcaria? — perguntou-se, quase num grito.

A insônia incômoda ardia em seus olhos avermelhados, pesando-lhes as pálpebras. A vida parecia-lhe inútil. Tentar dormir também. Levantou-se, cansado do descansar. Calçou os sapatos e saiu para o frescor da noite. Vagou sem rumo, como sempre, daqui prá lá, buscando uma direção para seus passos. A madrugada encontrou-o vagando sem destino, com uma garrafa na mão, tomando um gole após o outro.

Não adianta mais, temos de acabar. Nunca mais vai dar certo, ela me disse. Por quê? Apenas porque eu não sou rico e não posso dar-lhe o luxo que ela quer (Um gole.) Embora quase cheia esta garrafa pesa-me pouco. Apanhe logo sua garrafa e suma daqui! Fui enxotado. Eu, miserável ser humano, um racional, fui enxotado como um cão. Mas eu não sou cachorro para ser enxotado assim. Sou apenas um ser humano, frustrado, buscando paz. Será? Sou nada. Sou um prisioneiro de paredes. Sempre o fui, sempre o serei. (Mas um gole.) Talvez este me apague a lembrança da minha amargura. Não adianta mais! Por quê? Por eu ser um pobre coitado que passou sua vida entre quatro paredes, sofrendo a opressão de não poder ser livre? Escravo das horas, escravo do tempo, do patrão, de todos, pra quê? Pelo dinheiro? Pelo dinheiro que ela recusou, talvez por ser pouco? (Outro gole.) Mundo ordinário, ordinário todo o mundo que por mim passa, com um riso de desprezo nos lábios. Pensam que estou bêbado. E me olham com esse riso de desprezo. Faces desconhecidas. E onde achar um rosto amigo? Esta cidade é minha, me viu nascer, conheço-a palmo a palmo, mas estes que passam por mim, quem são eles? Que fazem aqui na minha cidade? Apanhe logo a sua garrafa e suma daqui! Cachorro é esse que ladra ao longe, não eu. (Mais um gole.) Já nem tem mais gosto o líquido, como a vida também não. Alfredo, se eu fizer uma coisa você deixa? — perguntou-me ela, ainda abraçada a mim. — Deixa eu ir trabalhar em São Paulo. Queria tanto aceitar aquela proposta — completou sem esperar minha resposta. Eu não deixo! — respondi.

Que tolo. Ela foi mesmo e por lá ficou. Inocente papel fiz eu indo procurá-la. Falamos qual dois estranhos, alheios ao amor que sentíamos, ou somente eu sentia? Não adianta mais, temos de acabar. Nunca mais vai dar certo. O seu fresco, me dá logo essa garrafa e pare de me encher o saco! Vá para o inferno, seu bêbado nojento. Quem pensa que eu sou? Um grande filho da... Toma sua garrafa e suma daqui. Vá curtir seu porre nos quintos dos infernos, seu cachorro vagabundo!

Vejamos se acerto a garrafa naquele poste... Errei. Como tudo na vida, eu errei. Creio que errei mesmo foi ao nascer. Devia ter nascido rico, mas como? Não me restou escolha. Agora só me resta uma coisa: trabalhar feito doido, ser o prisioneiro de paredes mais esforçado deste mundo. Voltar a ser preso novamente entre aquelas malditas paredes, não importando suar, estar preso, escravo do relógio, escravo do patrão, mas ganhar dinheiro. Sim, talvez seja isto o que eu deva fazer. É o único remédio para mim. Já não posso mais suportar esta vida sem razão. Devo voltar agora para casa, descansar o corpo. Amanhã é segunda-feira e devo recomeçar tudo de novo. Se eu ficar rico, talvez ela volte para mim.

* * *

— Acorde, Alfredo, já é tarde! Você não vai trabalhar? Já é segunda-feira, não se lembra? — acordaram-no no dia seguinte.

Ele abriu os olhos, olhou em redor, pensou um pouco e disse:

— Pô, aquela vagabunda não vale um pingo do meu suor.

E revirando-se na cama adormeceu novamente.    

CONTOS DO MAGO DAS LETRASOnde histórias criam vida. Descubra agora